Literatura_Narrativa_Contos: A Sentinela.

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Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Sunday, September 24, 2006

A Sentinela.















A Manguaba estava acesa pela lua cheia e lá íamosnós à sentinela do Ranílson, na casa da velha LimaSoares. Na descida, parecia que dos nossos passos,carregando nossos corpos, mandavam os olhosenxergarem a cidade lá embaixo, como quemisteriosamente subindo por entre o matagal verde que ciliava o pedaço de mata fechada entre os escassos casarios da chegada. Tudo parecia vir ao nosso encontro como se voando lento, simulando uma aproximação incrível. E paulatinamente íamos ficando mais perto dos telhados das casas, enxergando seus quintais, graças ao espetaculoso brilho do luar.
Ainda estávamos a um bom pedaço de caminho para chegarmos lá, e já ouvíamos o som do palavrório, inentendivel ainda, mas característico pelos agudos e graves da algazarra fúnebre.
Calhaus perdidos por entre a estrada nos faziam descer a serra em serpentina. Sabíamos, eram como festas engraçadas, já que em Pilar, às noites, não dispúnhamos de ofertas de lazer. Tempos idos, velhos tempos, diferentes dos de hoje em que me encontro com o outro tempo de rememória e escrevo este conto com vontade de eternizar a festa de mistérios acerca da celebração dos mortos nordestinos – a famosa sentinela.
_Quem é o defunto?
_Ranílson, pescador.
_Morreu de que?
_Cachaça muita no rabo!
_Eita, essa bicha quase todo mês leva um pras terra dos pés juntos.
Uma grande latomia. Na pequenina janela da frente, coberta de gente por fora e por dentro da casa, uns três comiam bolachas com café. Sentia-se o cheiro forte do álcool no oitão da casa; a aguardente era servida aos borbotões, como se o velório carecesse de seus efeitos para dissimular a tristeza que a morte traz. Essa não! Via-se era grande festa cheia do povo da vizinhança e uns tantos outros que vinham até de longe. Bebia-se e comia-se sem dó do morto que, frio e lívido, estava longe dos sentidos dos vivos. Um só não se via ao lado da urna. Sempre estavam por perto vários presentes, um encobrindo o medo do outro, coisa que talvez fizessem inconscientemente.
_Ele era tão bom pra mim, meu Deus..., o que será de mim agora..., sozinha, sem ninguém, pobre de Jô...?
_Num grita não, mãe, precisa isso não. Histeria da gota!
_Respeita teu pai, menina, choco e frio aí dentro dessa desgraça de caixão ...
A noite era curta e fria. A alegria dos convidados espontâneos fechavam-na com a alegria de sempre. Chegada a hora do enterro, apanhavam a tampa do caixão encostada na porta de entrada da casa. A latomia aumentava, e o antes controlado choramingo de repetição se fazia gritos alardeadores. Dali e de acolá ouviam-se os berros. Era um Deus nos acuda tremendo.
Eu já estava bêbado de sono, doido que já enterrassem o defunto para retornar, tomar um bom banho e dormir até umas horas. Descansar! Estava realmente cansado. Os olhos não respondiam mais à minha vontade de manter-se na vigília.
Fecharam o esquife. A viúva desmaiada era socorrida pelas filhas. Ouvi quando Genésio falou:
_Essa fia do Ranílson é boa feita a peste.
E a jovem elegante, se triste ou não, após ouvir o elogio, descuidou-se um pouco da mãe e voltou-se para o autor das palavras jogadas ao vento como se a quere agradecer-lhe, com um discretíssimo sorriso.
Ladeira abaixo levaram o esquife nas alturas dos ombros seis fortes homens. Foram apressados. A casa do defunto ficara para trás, imunda de pó de bolachas e copos e xícaras, além dos tambores dispersos pelo terreiro. Contei uns oito deles. Canecas e copos passavam de dúzia. Alguém varria a passos curtos da cozinha para a sala – direção obrigatória na crença mística do povo pilarense, quando se varria a casa de um defunto.
Quando a noite chegou, novamente cedo a lua imensa deitou-se no espelho d’agua lagunar. Um espetáculo absolutamente diferente do outro.Fez-se uma poesia à lua, à noite, à lagoa e a um bagre viçoso encantado nas águas que vez por outra pulava dela talvez lutando para sobreviver das garras doutro peixe maior ou, quem sabe, querendo beijar a lua linda que faroleava nas águas da Manguaba. Nada de funeral agora. Alguém acreditou na serenata e, lá na casa de Glorinha do senhor Herculano, sob a primeira janela alta do casario, viam-se os três rapazotes enamorados, um deles sem se saber ao certo qual, apaixonado pela filha do dono da casa. E a lua sorrindo acompanhava de perto a outra alegria, diferente, bem diferente da outra, lá da sentinela.

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