Literatura_Narrativa_Contos: As duas Mulheres

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Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Friday, September 01, 2006

As duas Mulheres





Maria, por mais bela que fosse, era muito mais simples do que sua beleza natural. Envaidecia-se com sua simplicidade, bem como com seus limites e desejos conhecidos e tolerados.
Viver era seu pré-requisito básico, e bem, se Deus lhe permitisse.
Havia estudado até a segunda série primária. Não encontrando nos estudos uma saída viável para seu crescimento espiritual, deixou-o e cuidou de aprimorar-se nas tarefas do lar, como preparando-se para algum casamento.
Era belíssima. Seu corpo convidava à aproximação do instinto do sexo oposto. Andava como se desfilasse numa enorme passarela. Mas não sabia falar socialmente. Era um desastre. De sua boca via-se sair o feio, o inimaginável.
Sua beleza física não a deixou muito tempo sem um pretendente. O filho do major Sapucaia, encantou-se com Maria e a pediu em casamento a seu pai, um homem também simples do campo, agricultor de mãos calosas e ásperas, desconhecido, como a filha, do banco da escola. Sua esposa, dona Bertulina, - além de deseducada, quase não falava. Era tímida ao extremo. Seu sorriso foi a única forma de denunciar sua satisfação com aquele pedido de casamento. Leopoldo era riquíssimo, estudado, deveria melhorar as posses da família de Maria. Talvez o pai do noivo fosse o homem mais rico do Vale do Paraíba.
Tinha muitas fazendas e incontáveis cabeças de boi. Leopoldo era um moço de feições grosseiras. Em virtude de sua imensa fortuna, não o achavam horrível de rosto. Mas era feio sim! Horrível, podia-se dizer sem receio de errar.
_Leopoldo, você vai mesmo casar-se com essa tal de Maria, meu filho?
_Vou, pai. Ela é linda. Vai ser minha esposa.
_Eu também acho ela bela. E suas letras são boas? Você é um homem culto, viajado...
_Não tem nada não, pai; eu porei professores para ela. O importante é que Maria é a moça mais bonita do vale. Isso me basta.
_Meu filho, beleza não é tudo sobre uma mulher. Você poderá gastar toda a sua herança e não se tornar feliz ao lado dela. Você não alcançou isso ainda, não foi?
_Nisso eu não penso! Vou casar-me no próximo mês. Quero uma festa incomum, pai!
_Está bem, meu filho, eu lhe farei o que me pede. Vamos à luta. Não é isso o que você quer?
No dia sete de outubro, se casaram. A festa foi inesquecível. Durou dois dias e foi lembrada por longos anos como um esplendor de festa. Foram morar na capital onde ele tinha que ficar à frente dos negócios da família. Eram entrepostos de venda e compra de cereais. Possuía enormes galpões abarrotados dessas mercadorias, e Leopoldo era quem comandava tudo.
As núpcias foram seu primeiro desgosto com o casamento. Maria, muito tímida, se afastou dele e deu-lhe trabalho para ser desvirginada. Ele suou, literalmente falando. Ela passou oito dias sem querer olhá-lo no rosto e isso o entristeceu muito. Ela lhe implorou e conseguiu dormir nesses dias em camas separadas. Ele, por sua vez, lembrou-se do que seu velho pai havia-lhe alertado. A imensa diferença cultural entre os dois era dramática e fizera-lhes um grande fosso. Passaram-se seis meses do casamento e nada daquela situação modificar-se. Ele recorreu ao prostíbulo local para satisfazer sua necessidade fisiológica e alimentar seu machismo. Seus pais não haviam sido avisados de nada. Preferiu assim.
Antonietta, a outra mulher de Leopoldo, chegou em sua vida de mansinho, numa dessas obras do acaso que acontece de cem em cem anos e sem mistérios. Do seu olhar aos seus trajes havia uma enorme viagem de aculturação. Formada em filosofia em Paris, com mestrado em Berlim, era mulher viajada e culta. Uma dama exemplar aos olhos do mundo e uma fêmea fogosa e voraz aos olhos de Leopoldo. O quarto de dormir era a mais fiel platéia expectante de suas fantasias sexuais. Nele exibia seus excessos e os de seus companheiros.
Na mesa, quando ainda se servia do desjejum para ambos, a consciência lhe inibiu até a fala.
_O que há com você, Leopoldo? Calado..., com cara de quem comeu e não gostou...
_Não é nada, Antonietta. É que não me acostumei ainda com seus hábitos liberais. Quando estamos vivendo nossa intimidade, só penso que o que você fez comigo, já o fez com outros mais. Será?
_Será! O que nos importa é que não o faço mais! Hoje, sou só sua. Nenhum homem me tocará; só você.
_Quando ando com você na rua e alguém me olha, logo penso que quer dizer-me algo de sua vida. Por quê?
_São os fortes resquícios dessa mazela que ainda o devora, chamado machismo. Livre-se dele!
Ele vivia entre as duas almas e os dois corpos. De Maria, preferia-lhe a alma; de Antonietta, gostava mais do seu corpo formoso e cheiroso a rosas do campo. Mastigava uma e tragava a
outra. Desfilava com uma e escondia-se do mundo quando estava com a outra.
Esse seu dilema manteve-se. Sua família soube tudo. Seu pai vangloriou-se do filho, e sua mãe condenou seu jeito. Sua fortuna fez a sociedade suportar e entender seu modo estranho de viver maritalmente com as duas desigualdades. Era um adultério, sim, porém socialmente bem tolerado.
Havia dois quartos: um calado e quieto onde Maria estava mergulhada e satisfeita, e um outro, cheio dos prazeres da carne e envernizado pelo denso efeito cultural da outra que tantos outros loucos romances vivera.
Falava-se das duas. Maria era tida como a legítima, comportada e quieta; a outra, mais amante que esposa. De Maria vinha o vínculo institucional da família da época, e da outra, o esplendor da virilidade e o óleo erótico que massageava o machismo de Leopoldo.
Inconscientemente ele bebia das duas vertentes doces que lhe chegavam à boca, com a chegada da noite. Amava Maria e queria Antonietta. Qualquer uma das duas que lhe faltasse quebraria sua paz conjugal. Resolvera viver a vida dessa forma. Elas não ignoravam nada.
_ Maria, você é a minha legítima.
_E por que você não se desfaz dela, Leopoldo?
_Porque você nunca aprendeu a me dar o que ela me proporciona.
_Só se eu for aprender com ela.
_Não! Você é pura. Continue assim. Essa outra coisa é só para ela. Você é uma mulher séria!
_Mas você não está cumprindo com seu dever de homem. Prefere a outra, deslealmente.
_O quê, Maria? O que você está me dizendo?
_Faz oito meses que não faz sexo comigo. Eu tenho me agüentado porque sou forte.
_Eu pensava que você não gostava de fazê-lo!
_E por acaso eu sou doente? Eu não sei fazê-lo bem, porque nunca me educaram para ser Antonietta, mas só Maria. Nem ao menos sei ler bem para poder comprar revistas eróticas e aprender tudo isso que a outra faz e lhe encanta tanto. Sou uma mulher desletrada.
_Maria, não quero ouvir esse discurso seu. Mudemos de assunto. Você não é disso.
E levantando-se, saiu de casa. Foi até a casa trinta e seis da rua Wenceslau Braga. Ali havia alguém à sua espera, talvez até semidesnuda e cheirosa, enchendo a lingerie florida.
É..., tudo isso ele encontrou e muito mais. Deliciou-se com o desjejum do corpo e da alma, massageou seu ego e foi aos seus armazéns negociar alegre. Fartara-se com muito fôlego.
Soube, após quatro anos de casado com Maria, que ela parira uma bela criança na qual ele pôs o nome de Maria Antonietta de Adonir Gonçalves. Só não sei se o destino as quis dividindo o amor dele por muito mais tempo. A união tão desejada e apreciada por ele dera o nome à filha. As duas qualidades que pensava poder a pequenina ter algum dia para ser mais feliz que os três, foram entregues assim a ela. Mas acontece que os sentimentos e os desejos não moram nas palavras, andam por caminhos que a própria natureza desconhece. Leopoldo nunca soube que a pequena Maria Antonietta nunca fora sua filha biológica. Onde há tímidas Marias, há fumaça e há fogo!

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