Literatura_Narrativa_Contos

Literatura_Narrativa_Contos

Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Tuesday, November 27, 2007

O navio grego



O meu ferro de passar era tão lindo...

_Quebrou-se, Vanelda?

_E então, mulher... quebrou-se!

_Ainda foi das coisas do povo do navio?

_E então...

Acho que não foi muito antes de 1960 quando o navio encalhou próximo à areia da praia, após chocar-se com os penedos do mar. Havia uma maré muito alta naquele bendito dia; enganosa maré de agosto quis que ele não prosseguisse rumo a nem sei onde. O navio era de bandeira grega. Estava lotado de alimentos e utensílios. A avaria que ele havia sofrido tinha conserto, sim. Apressaram-se alguns dos seus tripulantes e se comunicaram com o Recife. Poucos dias depois do acidente eles foram retirados do navio. As mercadorias, muitas delas, e a própria tripulação, também, foram retiradas do convés. Os homens seguiram viagem até a capital de Pernambuco. Lá haveriam de ser orientados. A vida é mesmo interessante. Eu estava no posto de saúde da cidade, quando um jovem, moreno claro, fala alegre, descontraído dirigiu-se a mim e começou a falar sobre a história de Japaratinga . Fiquei curioso para saber. Falou-me sobre a história do encalhe do navio grego e sobre a cidade. Disse-me que Japaratinga significava “Arco Grande”, nome dado pelos antigos índios que descobriram o lugar e, quando o avistaram, assim chamaram a ponta do mar que lhes pareceu com um grande arco côncavo. Explicativo, ele relatou com carinho quase tudo o que sabia dos dois.

_Chamava-se Papanipolovo o navio. Era imenso. Nós, aqui em Japaratinga, nunca havíamos visto nada parecido com ele. Um navio bonito trazia consigo, em suas dependências, uma gente cantante e alegre, viva, mesmo! Disse-me aquele jovem que tudo o que me relatou realmente havia acontecido. Eu acreditei! É comum chegar nas casas dos habitantes da cidade e encontrar algum objeto ganho por algum de seus familiares, à época em que o navio encalhou. A tripulação foi muito generosa com o povo, presenteando-o fartamente.

_Mamãe ainda possui um rádio grande, doutor.

_Bonito? perguntei a ele.

_Grande e colorido. Pega as rádios todas. Ela, após usá-lo, cobre-o com um pano limpo, flanelado, com todo o cuidado do mundo para que ele não sofra avarias. O senhor sabe, né..., essas coisas do estrangeiro, e principalmente gregas, devem ser de difícil conserto. Enquanto o jovem falava, eu acenava afirmativamente com a cabeça, como se quisesse consolidar seu discurso alegre, cheio de sua alma. Nem precisava muito puxar por sua memória. Parecia saber tudo de cor. Pareceu-me ser um contador de histórias nato. Era noitinha já, quando iniciou o seu relato histórico e cultural. Eu estava interessadíssimo na história. De repente o carro parou na porta do posto de saúde e eu o deixei sentado no banco grande da recepção e corri para atender a vítima. Infelizmente estava morta. Quando eu olhei para trás, meu olhar encontrou o olhar do jovem contador de histórias e enxergou nele lágrimas abundantes. Por que ele chorava?

_Doutor, esse senhor era a única pessoa em Japaratinga que sabia tudo sobre o Papanipolovo. Que pena! Agora só resto eu...

_Entendu então que a sua importância social aumentou?

_Ainda não me caiu a fichinha, doutor.

_Pois é!

Liberei o corpo após assinar o atestado de óbito e fui consolá-lo. Havia dentro de sua alma um outro navio triste encalhado, enlutado, necessitando de um forte abraço meu. Fi-lo também entristecido e levei-o até a porta principal do posto. Para minha alegria maior, encontrei, certo dia, acho que dois anos após a morte do senhor Olvidio, no posto de saúde, um livro do Ademário, na única banca de revista da cidade.Trazia no título: O Papanipolovo! Comprei-o, era o único exemplar à venda. O dono da banca me disse que, só quando vendia um exemplar, era que o autor trazia outro e repunha. Este conto eu o fiz para homenageá-lo. Não sei se algum dia ele o lerá. Se não, o farei por ele quando minha saudade descortinar a memória.

O aendedor dos lampiões



Acendia os lampiões das ruas impreterivelmente às cinco. Um jovem de andar alegre, sempre trazendo às mãos acenos gentis para quem às portas estivesse; era o dito cujo que a essa hora os acendia e, emparelhado com o nascer do sol, os apagava. Um vai-e-vem rotineiro, manso e tão bonito.- E esse jovem, ó poeta, não serviria para encher teus versos?- Interessante...- Mais do que interessante não seria pô-lo no papel, entre teus versos?- Verei isso mais tarde.- Quando ele apagar os lampiões então!Uma chuva fininha, molhadora, típica de julho. De longe, a Praça Jorge de Lima era escondida por uma nuvem branca, serração fria e comum a essa época. O grito do apito do vigia noturno havia dormido. No bico da praça, três barracas velhas de tábua estavam sendo armadas. Nelas costumavam-se ver os montões de cocos secos e uma velha gorda batendo uma arruela de ferro no casco deles para verificar se estavam sadios – bom teste esse,conhecido pelos compradores mais comuns.Os lampiões continuavam acesos, e os raros transeuntes que cruzavam as ruas olhavam para eles e se admiravam por ainda não terem sido apagados. Cadê o jovem apagador de lampiões? A feira se arrumava, e os primeiros gritos dos vendedores eram ouvidos.- Quem vai querer perua gorda, pondo, lá das baixas da Fazenda Anuns?. Barata! Barata! Barata!- Pitomba doce! Jabuticaba. Vamos parando, fregueses; as frutas estão doces e sadias! Eita que tanto frio, meu Deus, Ave Maria! Vou virar um picolé já já!Eram seis da manhã, e os lampiões continuavam consumindo desnecessariamente seu combustível, o gás. Nada de ninguém chegar. O jovem deveria ter sido vitimado por alguma coisa. Morrera? Nunca se havia presenciado um atraso desse. Ele parecia saber ouvir o sol e, quando aquele espelhava-se no céu, o jovem esticava-se com a vara à mão para apagar os ditos cujos. Ofício sabido e tratado a bom gosto.E então eu resolvi sair à procura do acendedor dos lampiões de rua. Deixei-me ir meio à algazarra que à altura daquela manhã os feirantes e os transeuntes já teciam. Um lindo burburinho de leva-e-traz, entra-e-sai, e eu à procura do jovem acendedor de lampiões.Cruzei a Praça Jorge de Lima, segui pela pequenina rua à frente e deparei-me, na última casa, um bangalô de primeiro andar, com uma pequena multidão abismada.- Moço, o que se passa aí?- É um louco, parado no meio da rua, com uma vara comprida às mãos e olhando para a janela do primeiro andar desse bangalô. A casa onde viveu o poeta da Nega Fulô!E eu então pude tudo entender. O jovem, infatigavelmente, sonhava, ao olhar da rua a janela da casa do velho poeta do “Acendedor de Lampiões”. Curioso, dirigi-lhe a palavra:- Jovem, e os lampiões ainda acesos?- Senhor, se eu for apagá-los, os que aqui vejo, apagarão e os meus sonhos faltarão com eles, cairão na escuridão e eu, ah!. Lá está o poeta a declamar para mim. Não o vês?- Vejo, caro jovem. Ele agora está declamando o poema “Essa Nega Fulô”.- Ah, então, enquanto ele declama esse, dá tempo de eu ir apagar os lampiões que ainda estão acesos.E o moço foi levando seus sonhos. Eu adentrei em seu delírio e, juro, ouvi e vi o poeta declamar para mim o outro poema. Meus lampiões pareciam que estavam todos acesos, como aqueles outros lá da praça. E, quando algumas raras lágrimas tremeluziram em minha face, entendi que até os nossos sonhos contagiam as almas vizinhas às nossas, mas têm limites. Apaguei os meus e fui comprar nas ruas cheias de gente de União! Voltei a ouvir a doce algazarra da feira de sábado.

_Feijão verde, quem vai querer.., sapoti, laranja-baía, fruta-pão, pimenta do reino, macaxeira...

Wednesday, February 21, 2007

Surpresa ingrata







Quando vim morar em Maceió, senti profundamente ter deixado para trás, longe daqui, lá para as bandas do sul, meu grande amigo Renan. Vim aceitando um convite da universidade para lecionar uma determinada matéria no curso de graduação em Psicologia.
Chegando, a primeira pessoa que conheci fora justamente um dos professores da cadeira de psicologia, doutor Everton. Sujeito humilde, muito culto, solícito e que logo conseguiu ambientar-me no novo núcleo de amizades a que tive acesso.
Renan e eu mantivemos um bom fluxo de correspondência. Certa vez, ele, de férias na Paraíba, ligou-me; era o finalizinho do ano e estávamos todos nos preparativos para o reveillon.
_E aí, amigão, passaremos ou não a virada do ano juntos?
_Eh ..., está em cima da hora....
_Não senhor! Arrume tudo e venha. O hotel, nós dividiremos aqui. Veja aí papel que vou dar-lhe o endereço. É onde já estou hospedado. Aguardo você .
Tive um problema de certa forma desagradável com meu amigo Everton. Ele queria ir comigo e eu, infelizmente, não o pude levar. Era final de ano, família reunida, ele não conhecia Everton. E assim eu fui sozinho. Tivemos uma boa estada na Paraíba e pudemos matar a saudade acumulada. Nossas famílias eram bastante unidas.
Aproximadamente dois anos após essa data, recebi Renan em Maceió; já estava morando melhor e fiz questão de hospedá-lo. Aproveitei para apresentar a ele o outro amigo. Fizeram uma boa amizade. Passaram a corresponder-se também regularmente, como ele e eu. Estreitaram a amizade e entre nós três, agora, havia apenas uma trindade amiga.
Ouvi Renan jogar muitos elogios a Everton. Sempre me dizia que ele era um sujeito muito bom, preparado para a vida, além de culto e um psiquiatra de mão cheia.
Estive aqui em novo ninho de amizade e de convivência e iniciei a cata de outras novas amizades e não posso queixar-me das tantas que fiz. Minha amizade com Renan sempre arrumava motivos para se fortalecer ainda mais.
Lembro-me de que era setembro quando recebi o telefonema. Soube que a mãe de Renan havia morrido e iria ser enterrada em Erechim. Providenciei passagem aérea, transferi compromissos e arrumei a mala de viagem. Lembrei-me de ligar para Everton e contar-lhe do acontecimento.
_Se eu pudesse iria com você até o Rio Grande do Sul. Mas não posso. Diga-lhe dos meus sentimentos e que estarei catando um dia de folga para ir vê-lo. Iremos juntos.
Estive com Renan entre lágrimas emergidas de profunda tristeza. Achei-o meio abatido,cor enxofrada, certo cansaço ao articular as palavras. Perguntei-lhe sobre sua saúde e não me acrescentou muita coisa.
_Estou bem, amigo,apenas triste com o luto.
Retornei dois dias após o enterro e prossegui com o laborão diário. Convenci Everton de que deveríamos fazer, no final do ano, uma viagem de férias por uma semana até Erechim. Um mês depois de tudo acertado, recebi a feliz notícia do próprio Everton de que ele estaria indo morar na cidade pernambucana de Bonito. Que bom! Gastaríamos menos tempo e dinheiro para passarmos o reveillon com ele e sua família.
Fomos de carro primeiro até Recife, onde nos hospedamos. Em vinte e nove de dezembro resolvemos que seria melhor se avisássemos a ele sobre nossa decisão. Não seria bom chegarmos nós, duas famílias, e encher sua casa. Como a cidade era pequena, temíamos que não houvesse hotel ou pousadas para nos abrigar.
Pedi a ligação telefônica. Do outro lado, a linha nada de desocupar-se. Tentamos muito até que conseguimos falar.
_Alô, é da residência do doutor Renan?
_É! Quem fala?
_Amigos dele.
_Pode deixar o recado comigo que passarei à esposa dele.
_Diga-lhe que é de Maceió. Chame-a!
_Ela está sem poder atender ligações.
_Quando lhe disser que é o Dilmar, atenderá.
_Queira aguardar,senhor.
Sua voz estava chorosa,sem a costumeira gargalhada de felicidade de quando falávamos ao telefone. Algo deveria ter-lhe acontecido. O quê?
_Eveni?
_Dilmar querido!
_Como vai?
Senti-a mais triste ainda. Era estranho.Estava chorando, pude crer pelo barulho que fazia ao limpar o nariz e alguns soluços silenciosos que ouvi. Sentia alguma forte dor em sua alma.
_O que houve, amiga? Estou indo até aí, passar o reveillon com vocês. Tudo bem ?
_Enterrei Renan ontem. Vocês não sabiam?
Postergamos o reveillon para alguma outra data, dessa vez no além, sem ventos ou tempestades, onde todos nós possamos estar reunidos em torno de uma grande amizade. Afinal, nem tudo costuma acontecer como nós queremos ou programamos. Restou-nos um final de ano enlutado, sem direito a qualquer lembrança alegre. Nosso amigo era uma jóia rara de achar-se.

A toalha





A mesa estava pronta! Nunca havíamos estado tão distantes, antes, um do outro. O casamento, esse oceano enganoso de ilusões que se dizem sempre dulcíssimas, embaça-se e requer reconquistas. O fruto saboroso, quando apodrece, é além de amargo. Se não é posto sob a terra morna para germinar com as chuvas frias do inverno, acaba-se com o verão, ressecado, em imprestável secura solitária. As imagens podem infernizar o que não se quer lembrar mais. As cicatrizes ficam e são tão reais que podem reagudisar velhas dores esquecidas. Mas também sei que tudo pode passar como uma nuvem levada pela força do vento. Há amigos que nos sopram; há conversas que são ventanias..., até tempestades. Naquele momento, qualquer vento forte desarrumaria a bonita toalha portuguesa, tão velha quanto o nosso casamento.
Uma toalha de linho puro. Flórida e bela com seus inúmeros desenhos portugueses. Galos encarnados, rendas avivando o tecido, uma obra de arte. Sempre foi guardada a sete chaves, pelo exagero de um zelo.
Seu bordado requintado falava da extrema beleza da arte com que fora feita. No centro, um castelo medieval realçava um gramado desenhado ao seu redor. Cercando-a, em suas quatro pontas, os galináceos e os bicos de renda da Ilha da Madeira. Ela havia sido tecida lá. O linho bege era discreto, como se querendo deixar o azul e o vermelho e o verde dos desenhos outros se avolumarem ao nosso olhar.
Casamos em dezembro. Seis meses antes, ela e eu estávamos à porta da casa de minha sogra, no interior do Estado, quando o vendedor passou arrastando a mala cinza, cheia de toalhas de mesa e forros de cama. Ofereceu-nos e ela recusou-se até a olhar sua mercadoria.
–Não, filha, olhemos...
–Essas coisas vendidas às portas, não são lá de boa qualidade
–Mas não nos custa olhá-las.
–Então as veja. Enquanto isso, vou lá dentro, apanhar um objeto que deixei no alpendre.
Um senhor de meia idade, cabelos grisalhos, fala mansa e compassada, arrastando um forte sotaque da ilha, abriu a mala. Ainda havia muita mercadoria a ser vendida.
–Está ruim demais vender tudo isso por aqui. Ninguém conhece a qualidade do que vendo. Querem comprar quase que de graça. Não sabem o que é linho, quanto mais essas preciosidades feitas na ilha. Essas cousas vieram de além-mar, são peças portuguesas de valor conhecido por qualquer pessoa de bom gosto. Vês?
–Sim, são belíssimas. Casaremos em dezembro.
–Então não há hora melhor de comprar algumas delas!
–Não temos lá tanto dinheiro.
–E eu estou cá de passagem. Hoje será o meu último dia por aqui. Não posso dividir valores. Tudo o que vender terá que ser à vista!
Encantei-me com todo o material exposto. Nem podia, mas comprei tudo. Teve que levar alguns cheques meus, dada a soma da compra ter sido alta. Meu problema agora era como dizer-lhe que havia me endividado, com a única intenção de presenteá-la com os lindos jogos de toalha, guardanapos originalíssimos, forros de cama que mais pareciam representar sonhos. Achei que o esforço era válido. Aquele presente lhe seria inesquecível através dos longos anos que pretendíamos viver casados. Quando eu pedia para que ela os usasse, sempre ouvia a desculpa de que numa ocasião de festa ela os usaria. E o tempo se encarregou de guardá-los. Nunca os vi enfeitando a mesa dos nossos jantares mesmo quando recebíamos visitantes ilustres. Permaneciam guardados e intocáveis no maleiro de um dos guarda-roupas em um dos quartos da casa. Por mais de uma semana, relembro, ela reclamou da compra. O vendedor português saiu meio entristecido. Além de ter ouvido dela que eu não devia ter comprado nada daquilo, sentiu que o preço oferecido por mim e aceito por ele, havia sido pequeno demais. Eu notara sua tristeza, mas havia comprado tudo. Lembro-me de que até a sua mala eu havia pedido que entrasse no negócio. Ele, sorrindo, negou o meu pedido e se despediu gentilmente, prometendo um dia voltar. Aquele moço de tez alva, face avermelhada, cabelos loiros e caídos sobre os ombros, nunca mais o vi. A imagem dele carregando a mala, agora vazia, leve, batendo em sua perna direita, essa ficou bem gravada. Andou até a esquina da rua quando, de um automóvel parado, parecia um táxi, saiu uma senhora de meia idade, ajeitando os cabelos, recebendo-o com certa apreensão. Ele pôs a mala no banco de trás do automóvel, pediu que a senhora fosse para o outro banco da frente e ele, ligando o motor do veículo, saiu com o vento. Foi para algum lugar para nunca mais voltar a vender-nos absolutamente nada.
–Entra! Já comprasse essas porcarias todas, não foi?
–São obras belíssimas, meu amor.
–E dívidas horrorosas...
Nem sei ao certo quanto tempo se passou desde aquela compra. Andamos com o tempo e a vida, amadurecemos para, só agora, descobrirmos que a história de uma vida possui capítulos indigestos e tristes.
Na mesa, sobre a linda toalha portuguesa, apenas 4 cálices: dois de vinho e dois de água. Eram de tinto – pelo volume sabia! Quando fui convidado por ela a sentar-me à mesa é que fiquei sabendo que nossos rapazes haviam viajado para o interior. A empregada, dispensada. Só havia ela e eu, em casa. Talvez também estivesse entre nós, invisa, uma terceira alma onisciente.
Senti um cheiro divino de bacalhau ao forno. O vinho que ela serviu era do Porto. A toalha, de terras afins – só os cristais falavam d’outro país. Convidado, sentei-me à cabeça. Como de costume, abri os guardanapos, pus sobre as pernas, desci as mãos às coxas e esperei que ela me servisse. Assim o fez. Em meu prato colocou uma porção generosa do peixe, o que não costumava fazer. Preocupava-se com minha saúde. Deitou o tinto no meu cálice e tragamos sem brindar. Eu desconfiei de alguma coisa, quando senti a ausência do brinde e o sea fácies trancado.
–Essas toalhas, esses guardanapos estão e foram postos, como é do seu imenso gosto.
–É..., eu sei...
–Não os ama tanto, não é?
–Você não?
–Nem sei se gosto mais de mim!
–Não ouse dizer uma coisa dessas. Nossa família é tão linda, nós te amamos tanto. Pensei...
–O que pensou?
–Que queria comemorar hoje algo especial...
–E quero, sim!
–Diz o quê!
A alma minha congelou. Doeu-me o coração ouvir seu discurso forte. Não quis acreditar, mas tive que fazê-lo. Chegara ao fim uma linda história de amor. O pior de tudo isso é que nos amávamos muito. Tínhamos sonhos para enfrentarmos, juntos, uma velhice alegre. Reuníamo-nos em quase todos os fins de semana. Ela expulsou-me de casa após o jantar português. Não tive para onde ir, a não ser viajar até o interior e ir dormir na casa de minha sogra. Lá, contei-lhe tudo. Meus dois filhos estavam em casa dela. Choraram, mas desacreditando- me pelo que tinham ouvido de mim. Era uma sexta-feira. Cheguei na casa de minha sogra às duas da manhã. Ficaram espantados. Ninguém mais dormiu àquela noite. Acontecia um fato inusitado. Uma coisa estranha. Muito estranha.
Passei a estudar a depressão. Não sabia que um mal pudesse ofertar tanto prejuízo a uma família feliz. A toalha da mesa foi a navalha do enforcamento. No sábado, às nove da manhã, é que ficamos sabendo da cena trágica. Não permiti que meus filhos vissem sua mãe pendurada e roxa. Ajudei a polícia a retirar o corpo pendurado.
Desde esse dia que, de vez em quando, quando estou lendo ou refletindo, vejo o vendedor de toalhas passar à minha frente. Ouço as reclamações de Lívia. O sabor do bacalhau, não o sinto mais; na lembrança – o peixe se fez carne, e a carne se fez verbo, um verbo que não se calou nunca mais! As duas carnes eram iguais em minha memória. Nunca mais traguei vinho algum, meus filhos vivem e trabalham em Lisboa. É comum passearem pela Ilha da Madeira. Adulam-me para estar com eles. Não aceitei ainda o seu convite porque o vendedor português ainda não saiu de vez da minha porta. A toalha? Durmo e acordo com ela todas as noites. Nunca deixei que a lavassem, para que esta história não se apague de tudo...

A gata da velha!






“A revoada dos pardais deixou a praça suja, inteiramente suja. Os bancos estavam imprestáveis para que alguns, neles, se sentassem. O folharal seco misturava-se sem fim, soprado pelo vento nem tão manso, nem tão bravio. A cidadela era esquecida por sua própria natureza física – uma pequenina ilha afastada do continente por meia hora de uma voadeira. Seus habitantes, nem índios, nem mestiços. Um grupo de homens descendentes de europeus. Seus antepassados habitaram a Freguesia do Rio, há muitas décadas atrás. O lugar, hoje, era apenas o celeiro de lembranças nem tão boas, de quem por ali já havia existido.
A madeireira, do outro lado do rio, não havia dado certo. Os motores movidos a diesel encareciam muito. A energia elétrica ainda era um sonho distante. A cidadela dormia com as galinhas. A última voadeira trazia os poucos jovens que estudavam em Portolândia.
Na janelinha da casa da velha Aurora, tudo passava com o tempo, mas não sua curiosidade quase atrevida. Olhava tudo, enxergava o que mais lhe interessava. Morava sozinha no casarão antigo e tinha pavor de andar de barco. Por isso, não acompanhava a evolução fora da ilha. A curiosidade e seu terço, além da gata Mimi, eram suas companhias inarredáveis.
No último dia do ano, quando os fogos de Portolândia pipocavam no céu, pouca gente estava na pracinha da ilha. Dona Aurora brechava pela janela quase fechada. O irmão do padeiro atravessou a rua larga, apanhou umas folhas secas caídas no chão, limpou alguma coisa nas mãos. Olhou para o lado dos poucos que bebiam cerveja na areia do rio, onde as voadeiras atracavam e andou na direção contrária. A velha abriu mais um pouco a janela . Mimi gritou. Dona Aurora havia pisado na cauda da siamesa. O grito alto da gata fez o homem assustar-se. Ao invés de seguir, retornou pela calçada. Ele sabia quem poderia estar a essas horas vasculhando o movimento da rua. Só a velha possuía gatos: Mimi e outros mais que só chegavam em casa para comer e dormir. Passavam o dia a catar os peixinhos que caíam das redes de arrasto que os pescadores traziam do rio.
–É de lá essa zoada. É Aurora! A peste me viu! E agora?
Ele ainda ouviu o batido da janela. Ela nem sabia que ele estava vindo vê-la, receoso de que falasse a alguém que o tinha visto, na ilha, àquela hora. Se Joaquim padeiro soubesse, o mataria primeiro
–Dona Aurora?
Demorou mais de dez minutos para que a velha lhe respondesse. Não queria ser notada.
–Quem é a essa hora?
–Abra a janela que verá!
–Deus me livre. Não estou esperando nenhuma visita!
–A senhora me viu. Não vai dizer ao meu irmão que estive aqui, não é mesmo? Não tá louca!
–O que é que eu ganharia com isso?
E a velha resolveu abrir a janela. Não encontraria novidade do lado de fora da casa.
–Venceslau?
–Fale baixo, o vizinho de cá pode ouvir.
–Tá no mar, ele, faz três dias. Atravessou o rio na segunda-feira.
–Foram todos?
–Não ficou ninguém.
–Então, qualquer coisa, eu pulo o seu muro e durmo no alpendre de trás da casa deles.
–Está maluco? Ainda fala uma coisa dessas? Não aprendeu ainda? Diacho de vadiação!
–Vontade muita de vê-la, dona Aurora!
–Você devia era ter vergonha na cara, esquecer sua cunhada e procurar uma mulher solteira pra casar!
–Quem? Tentei tanto...
–Não falta sapato velho pra pé novo!
–Dona Aurora?
Era a pequenina frase que faltava. A noite barulhou muito. Houve mais gente na ilha àquela noite. O padeiro aderiu com sua amada à pequena zoada que alguns fizeram até quase a madrugada, ao lado do pequeno cais. Venceslau dormiu na sala, em um colchão que lhe ajeitou dona Aurora. Deu trabalho para ele deixar a casa da velha e correr até a voadeira deixada escondida na ilhota do meio do rio. Esse exercício de perigo se repetiu muitas vezes.
Repetidamente Venceslau driblava os olhos dos moradores na escuridão da noite. A nado vinha da ilhota, trazendo a roupa ensacada para não se molhar. Na areia do rio, sob umas amendoeiras altas, vestia a enxuta e deixava o calção molhado espremido, enxugando.
–Já chegou, né? Entre logo! Teu irmão quase mata tua cunhada com uma surra!
–Quando foi isso?
–Ontem pela madrugada. Aquele cabeça dura jurou que você tinha visitado Sílvia ontem.
–Apanhou a inocente!
–Inocente? Ele só errou o dia em que pecou pela última vez. O resto, não! Foi bem merecido.
Sílvia não agüentara tanto sofrimento. Fugira. A casa da velha, antes acolhendo apenas felinos inquilinos, agora era quase um prostíbulo. Venceslau que amava Silvia, amou Aurora e Mimi. Esta última passou a ser-lhe a preferida. Aos olhares espantados das duas, ele se divertia com a gata. Quando escurecia na ilha, o casarão desbotado não tinha mais a sua janela aberta alimentando a curiosidade da velha. Pela manhã, logo cedo, ela era a única que se levantava e ia comprar leite, pão e ovos. Venceslau detestava peixe.
Certo dia a velha adoeceu gravemente. Necessitava ser levada para Portolândia. A voadeira na ilhota poderia até servir, mas como levar a velha? Sílvia não podia mostrar nem seu sopro de vida. O padeiro a mataria sem piedade
Ele vestiu-se com a roupa da nova e levou a velha na escuridão do tempo. Deixou-a à beira do rio. Nadou para trazer o barco, desta vez, até a beira da areia mesmo, do lado de cá da ilhota. Foi!
–Que velha cachaceira, essa dona Aurora. Vê só o porre que tomou no que deu! Foi o que pensaram as duas almas que passaram a seus pés, talvez em direção ao cais. Nem imaginaram a verdade que estava ali, caída, esperando o socorro alheio.
A coitada nem os olhos abria mais. Tudo deu certo. Ele levou-a cidade grande. Teve que demorar. Quase perdeu a perna esquerda, ao encostá-la no motor do barco. Ficaram os dois internados no mesmo pronto-socorro. A casa ficara para trás com a outra.
–Dona Aurora?
Sílvia não podia responder. Era o padeiro que queria dar-lhe um recado para que ela repassasse aos pescadores, seus vizinhos. Sílvia vestiu-se com a roupa da velha e meteu pó nos cabelos pretos, amarrando-os com um lenço para se parecer com a outra. Abriu a porta somente com dois dedinhos de distância uma falha da outra.
–Que quem?
Foi imediatamente reconhecida por ele, que forçou a porta e entrou.
–Dona Aurora está cheirando a pó!
–Cuide em deixar a casa – falou ela com a voz embargada e trêmula.
Foi muito o amor que fizeram. Ele dormiu com a falsa velha, sem deixar que ele tirasse as roupas da falsa Aurora. Muito amor fizeram. Enquanto durou a ausência dos outros, eles ficaram usando suas máscaras para conservarem o amor, que nunca havia acabado entre eles. Representaram muito bem, encenando a chance que seus desejos tiveram.
À porta, alguém toca!
–Quem será?
–Olha lá, Aurora!
–Que Aurora, que nada!
Ele sorriu. Deixou-a ir até à porta.
–Você com minha roupa nova? Quem lhe permitiu usá-la?
Entraram os dois, sãos e alegres. A primeira pessoa que Venceslau avistou, sentado no sofá velho da sala, foi ele. Empalideceu e desmaiou de medo. Que medo!
–Eu não tenho culpa de nada – disse a velha!
O padeiro correu a socorrer o irmão. Os ânimos se acalmaram, eles estiveram a se encontrar por meses, anos, talvez. A velha amou o padeiro, que amou Mimi, que amava Venceslau e que abandonou Aurora.”
–É por isso que, se você resolver ir morar lá naquela porcaria daquela ilha, eu não vou! Essa história é verdadeira mesmo. Todo mundo que mora lá, fica com fama de safado. Não vou não!
–E a empresa, o que direi para meus diretores?
Mande eles morarem lá por você.
Havia uma lenda, na ilha, com muitos adeptos. Gato, ninguém queria criar. O padeiro, coitado, não saía de casa nem para ir à missa. Era prisioneiro dele mesmo. A casa velha que diziam, no passado, ter abrigado a velha Aurora, tinha apenas ratos e morcegos por inquilinos. A ilha só não era mais solitária por causa da força da lenda.
Na pracinha, o folharal continuava abundante. O vento nem manso, nem bravio misturava umas às outras. Os pardais ajuntavam-se e sujavam os bancos da praça. O tempo adora a ilha, não passa nunca! Qualquer hora dessas eu vou chamar uma meia dúzia de leitores meus e vou até lá. Não irei como escritor. Travestir-me-ei de leitor, para saber bem mais dessa lenda. Irei numa voadeira sem combustível!

Thursday, December 14, 2006

Era apenas um filme...







Uma língua gorda enroscava-se nos cantos da boca da mulher. As palavras lhe saíam indecifráveis. Entre uma e outra delas, a velha expulsava da boca sementes sei lá de quê. A fruta ignorada parecia-lhe ácida demais. Sua face mugangava como se gostasse desgostando do que comia. O crescente que essa imagem humana ia fazendo, chamava uma pequena multidão para ouvi-la, mesmo que não entendesse seu discurso. Agônica criatura queria fazer-se clara ante os ouvidos alheios. Esforçava-se para isso.
Na geografia do cenário onde apelava incompreendidamente, bem no centro do círculo onde punha seu corpo para clamar, havia um grande caixão preto, fechado, amarrado por duas cordas grossas e de cores diferentes. Algo havia nele. Ela batia-o com uma pequena vara que tinha entre os dedos. Gritava, pulava, chorava, sorria. Havia ali uma velha mulher atônita a tentar expulsar emoções abafadas. Um interessante episódio que bem podia ser chamado teatral.
Um senhor robusto, bem vestido em alvíssimo linho branco, dirigiu-lhe a palavra. A velha calou-se por segundos, estirou o braço direito na direção do moço como se quisesse mostrar-lhe algo no seu chapéu ou o mesmo. Seu gesto evadiu-se desentendido.
_A senhora o que vê neste chapéu?
A velha, sem lhe responder, continuou a enroscar a língua, sem querer deixar cair o resto das sementes da fruta e um pedaço de fumo de rolo que mascava satisfeita.
Outros se achegaram a ela. O caixão preto semelhante a um féretro continuava se aquecendo com o sol cáustico de perto do meio-dia. A tabica chegava até ele com a força da ira da mão direita da velha.
_Dona moça, o que quer nos dizer?
O padre tentou decifrar seu desejo: chegar perto dela. Sendo empurrado com força, desistiu. Riu-se e saiu dali para não mais voltar. O círculo de gente curiosa crescia assustadoramente. Quem estava nos seus confins já não mais ouvia os gritos daquele ser estranho.
Quando já passava das duas da tarde, tendo ela suas vestes estranhas ensopadas de suor, um cheiro forte saído de suas axilas, olhou para o caixão, ajoelhou-se ao seu lado, pondo as mãos na corda mais escura e fez sinal para desatar o nó cego de há muito feito. Soltou a tabica no chão, limpou as mãos no tecido da saia, olhou para os quatro cantos da praça e decidiu desatá-lo. Decidira manifestar publicamente o seu maior segredo.
Uma tempestade caiu sobre a praça. Os pingos frios da chuva súbita de verão dissiparam a multidão que até há pouco cercava interessada a velha misteriosa, tentando decifrar o que havia no caixão preto deitado no chão já escaldante da praça.
Abriu-se a urna preta. Demorou mais que dez minutos até que a velha desatasse os nós da corda que a envolvia.
Viram-se vários embrulhos de papel-jornal. Mais de uma dúzia deles. Bem amarrados com cordões vermelhos como se pertencesse a uma seqüência o que continham os pacotes obscuros.
_Tá aí, veja quem quiser. Homem safado merece isso mesmo. Belzebu deve estar com Damião nas profundezas do inferno. Eu estou aqui na praça mostrando sua história. Sou uma mulher viva e ele um garanhão morto.
Dentro dos pacotes, velhas fotos do dia de seu casamento, cartas amorosas trocadas por ambos, além da navalha suja de sangue e, por fim, no último pacote do caixão, os órgãos genitais decepados do marido de Maria Juliana.
Saí da sala de projeção do cinema São Luiz como se houvesse visto realmente a velha maluca algum dia no calçadão da Rua do Comércio. A direção e o elenco do filme trabalharam tão bem que nos deixaram com a ficção, pelas ruas, de volta para casa, como se nossa verdade cotidiana o fosse. Que filme!

A Academia




_Ele ia a todas as reuniões. Manso de espírito. Aprendera a tecer enredos envolventes que prendiam os leitores. Colecionava prêmios literários – a leitura ocupava-lhe as noites de insônia tão constantes em sua vida.
Saulo, o acadêmico, se adonou das boas letras e fez sucesso. Apesar de barulheiro em suas fábulas, soube viver a simplicidade. Censor de si mesmo, aprendeu a errar pouco porque trabalhava letra por letra, palavra por palavra.
Findas as palavras do acadêmico decano, estalaram os aplausos no salão nobre. Meia dúzia de acadêmicos brigava com a gravidade para se levantar de suas poltronas. A Academia havia envelhecido bastante.
O vento adormecedor da morte o havia feito partir. Adonde sua alma fora, não se sabia ao certo. A aferventação do prenúncio sucessório entre os bocejos das mesmas bocas falantes já era uma realidade. A Academia preencheria a vaga da cadeira de número treze em no máximo noventa dias. Era a regra vigente.
Anojosos pares falavam demais. Velhos desdiziam dos companheiros. Entre eles um pesadelo assíncrono nos corredores da Academia. O brilho de poucos atormentava a maioria absoluta. O venerado líder, acadêmico Hosbil, plantara Narciso diante de seus olhos. Era cenoso seu mise-en-scene diante do palco onde trabalhava. Sobre sua cabeça, ao invés dos louros da fama, agia a coifa do repreensível. Velhos gladiavam contra velhos. A fama era a seiva de seus comportamentos.
Ainda estavam no vento do velório do da treze, e a força da sucessão era mais forte que o respeito ao morto. Nos bastidores a urdidura de uma vontade diferente. Falava-se bastante da reunião da presidência para a análise dos nomes dos novos inscritos e de quem deveria ser convidado para preencher a cadeira vaga. A pré-reunião acontecia nas trocas de telefonemas e nas conversas nos corredores do prédio.
Um velho guardião do prédio, seu Vicêncio, a quem a cifose havia posto uma túnica ao corpo, morava nos fundos. Cadeira por cadeira ele as limpava. Passeava entre elas confabulando com as almas dos que se haviam ido. Sorria, talvez lembrando-se de cousas acontecidas. Algumas delas lhe punham na lembrança azedumes desinteressantes e ele as maldizia mudando seu humor.
_O presidente chegou, Vicêncio?
_Ainda não, acadêmico Ivo. Não deverá tardar.
O acadêmico deixou o recinto. Demorou muito para vencer as poucas dezenas de metros até a sala principal. Foi-se, arrastando os pés antigos, seguidores nonagenários das letras. Homem de humor instável em dias diversos. Possuía almas diferentes para dias desiguais. Sonhava em ser o presidente da Academia de Letras onde já se assentava como acadêmico há anos.
Um era cômplice do outro? Nada. Dizia-se nos extramuros acadêmicos que, quando numa roda de três, dela um saía, quem ficasse se encarregaria de maldizer o que se fora. Em se voltando aquele para o mesmo conjunto de antes, era bendito e ouvia elogios encorajadores dos outros dois. Dar as costas nessas ocasiões era muito perverso.
Quando o presidente Hosbil chegou, acercaram-se dele e a reunião não demorou a acontecer. Falariam das novas inscrições para a vaga cadeira treze, seus pretensos candidatos e quais as manobras a adotar-se contra os candidatos indigestos. A começar pela estatura, não escondia sua imponência. Muito alto, era um mulato forte. Admirava-se como orador que caçava as palavras pouco traduzíveis pelos mortais. Gostava de centrar sobre si as atenções alheias. Vigoroso em suas decisões, não voltava atrás. Inimigo odioso e amigo censor, exigia respeito e obediência dos seus pares, como se fosse ele o maior dos opressores vivos.
_Está ainda vaga a cadeira treze. Quem poremos nela? A nossa porta deverá continuar estreita. Esta casa é nossa. Para ela não poderá vir o inimigo. A cidade está a falar dessa sucessão. Temos um papel decisivo. Importa-nos quem se inscreveu até hoje. Parece ser verdade que o doutor Everaldo o fez. Vejamos esse relatório que acabou de me passar a secretária. Ele está entre esses outros dois. Não vai ganhar. É um homem inculto, de difícil convivência. Pouco me importa se rico ele o é. Não sentará na treze. Não deixaremos jamais.
Entre uma salva de palmas, o acadêmico Ivo falou:
_É rico ele, confrade presidente?
_Não é moral que o senhor me faça, justamente agora, essa pergunta tão infeliz. Quer seu dinheiro, confrade?
_Absolutamente, presidente. Apenas perguntei mergulhado em certa curiosidade.
_Não achei graça na pergunta e não me importarei em respondê-la. Estamos aqui para falarmos de cousas mais sérias. Aprecie outros valores.
A reunião acordou seus membros. Um clima bem morno, quase quente, eriçou as idéias da maioria. A sucessão prometia alimentar verdadeira batalha literária. Os interesses da Academia deveriam ser defendidos a todo custo.
Entre seus quarenta membros apenas três eram do sexo feminino. Um esmagador preconceito pouco notado por elas. Tinham vozes débeis. Uma, velha professora aposentada de literatura, outra a esposa de um ex-governador que havia doado à Academia, no seu mandato, uma pequena fortuna retirada dos cofres estaduais, a última uma velha decrépita que nem mais lia. Essa plumagem financeira também regia as eleições da Academia. Prestígio político, fama, dinheiro etc, tudo isso dava votos sólidos e decisivos. O pleito tinha a cor do presidente que a tudo impunha sua força mais do que narcísica, já megalomaníaca, talvez.
A idade azumbra o corpo. As idéias resistem um pouco mais. Quando um homem pára de sonhar, não mais existe. A vida fica barreada dentro do corpo, e a alma circunvoa atocalhando a eternidade. Eles, sua maioria, prestacionavam seus votos redesenhando o quadro sucessório. O ufanismo sentava-se na cadeira antes mesmo de seu dono. A inobediência só era permitida a poucos que só se atreviam a fazê-la dado o voto ser sigiloso. O senhor presidente era guindado às alturas para anunciar sua vontade que dizia ser a da velha Academia de Letras. Noticiavam quem poderia vencer. Farpeavam quem queria vencer. Folegando-se, iam à luta no horizonte da vontade presidencial. Narcizo, o velho narcizo, urrava como leão refordilado. Um forte redemoinho angustiado pelos espinhos dos desejos de alheias literaturas provocava-o inconscientemente. Mas era necessário ocupar-se todas as cadeiras. Era desse rearrumar-se que vivia ela, passiva a tudo. Nem ela era imortal, visto que o tempo já abocanhava suas paredes, reafirmando silencioso que nada resiste a ele para sempre. Era assim. Volviam-se as idéias das idéias. Havia um susto no ar rarefeito do salão quase nobre da velha Academia cheia de mortais traquinas.
_Daqui a alguns dias quase a metade de nós não poderá vir votar. A Academia está envelhecendo rapidamente. É-se necessário sangue novo. Até eu, como seu presidente, sinto-me assim. Devemos saber quem convidar para nosso convívio. Não devemos nem podemos alimentar lobos e serpentes para se aninharem entre nós. As letras depois. Primeiro os homens!
_Senhor presidente, que tal votarmos no escritor Saulo Vermelho?
_Nunca! Esse homenzinho não escreve nada, apenas suja as folhas.
_Mas continua a vender uma estupidez de livros mundo afora.
_Você agora o disse certo: estupidez. Não só a venda desses folhetins de sua lavra, como, antes deles, seu bestial discurso.
_Entrou na confraria do livro.
_E daí? Comprou sua vaga. Nós não podemos oferecer-lhe uma entre nós. Esqueçam esse bruxo. Aqui jamais sentará entre nós.
_Desculpe-me, senhor presidente. Pus o carro diante dos bois. Volvo-me ao meu silêncio atencioso. Sinceramente, minhas desculpas.
_Dele necessitamos, caro confrade.
Tantos sonecavam no fim da sala de reuniões. Outros, a caminho, apenas bocejavam. Horas houve em que o doutor Hosbil falara para cinco ou seis acordados. Decidiram quem apoiariam. A decisão seria absoluta. Mais uma vez a suprema vontade do narcísico presidente deveria prevalecer. O quadro sucessório, agora redesenhado, apenas aguardaria, dentro de cada confrade, a hora de usar os sufrágios encabrestados, torvação para os indesejados pela Academia.
Nos bastidores acadêmicos, almas ufarradas desdiziam do lá orientado. Outros poucos eram silentes, cuidadosos. Folegavam para enxergar as brechas da porta da Academia. Que os ventos soprassem. Os dias, uns atrás dos outros, passariam com diferentes desfechos. Nalgum deles desigual, a vaga cairia noutro redesenho literário.
Ficaram lá dentro após a reunião por mais de duas horas. É que chovia bastante e o vento frio estimulava salvas de espirros e tosses entre eles. Quando saíram, levaram consigo o ranço do pleito defendido. Via-se estampado no rosto de tantos a força do orgulho e da vingança. Na cidade e fora dela houve assunto polêmico, fofoca atualíssima para encher as conversas telefônicas e outras arquitetadas. Saindo do velho mausoléu de imortais, apenas adocicaram a língua para reproduzir seus discursos, além da força de uma matraca. Havia muitos macacos num só galho. Apesar de a árvore ser frondosa, sua madeira não havia formado cerne; portanto, fraca de sustentação. Passível de quebra fácil. Os macacos que se cuidassem melhor. Corriam riscos de morte.
Os jornais noticiaram como nunca se havia visto antes. O velho presidente perdera seu voto. A Academia o traíra. Venceu Saulo Vermelho. Um ano após sua posse era um dos mais cortejados acadêmicos. E assim foi, e assim é, e um dia não será mais...

Cadê a chave







Há meses que Totonho arquitetava roubar sua linda Carmélia. Encantara-se com suas duas belas tranças e olhos escuros como as densas nuvens de inverno. Seus pais, irredutíveis, negaram o casamento várias vezes.
_Eu vou te roubar amanhã cedinho.
_Se não der certo, adeus nosso desejo.
_Duvido que não dê.
_Esperamos. Vou me aprontar lá pela madrugada.
_Vou parar o carro e lhe dar um minuto para entrar nele. Estamos certo?
_Demais até.
O coronel Justino andava de olho nos dois. Sua filha fora negada com veemência ao jovem. A conversa entre eles, única esperança de desfazer a decisão do velho, havia sido cortada há meses. Roubá-la ser-lhe-ia a última investida atrevida.
A noite estava parda. Nem o grito do grilo se ouvia. A coruja chilreara pouco. O apito do vigilante da rua parecia ter-se ido com a ventania da madrugada que havia sido incomumente forte.
A casinha era a última da rua. Após ela só a estrada de barro entre árvores floridas, prenúncio de uma boa safra de frutas adocicadas. Os velhos dormiam o fim do sono. Ela, acordada e atenta, encostara o ouvido direito na brecha da janela do quarto da frente onde estava de trouxa pronta e sandálias na mão.
Às três e cinqüenta da madrugada ouviu o barulho do carro. Abriu a janela do quarto e confirmou a chegada de Totonho. Era ele. A chuva resolveu atrapalhar a ação dos dois. Choveu forte. Ele parou o carro em frente da casa, desceu rapidíssimo, bateu leve na janela do quarto dela conforme haviam combinado. Algo caiu-lhe do bolso. Na pressa não deu valor. Queria mesmo era levá-la dali para bem longe.
Com apenas três minutos estavam no carro, sentados e molhados da chuva. O velho notara o barulho e levantou-se às pressas:
_Quem tá aí? É você, Carmélia? Acorda, mulé, aquele cachorro tá roubando nossa fia. Né Carmélia não, é ele.
_Será, véio?
_Que será, que nada, já roubou.
Em frente à casa, eles no alvoroço imediatamente antes da tentativa da fuga:
_Vamos, meu amor, ligue o carro.
_Perdi a chave na pressa. Senti quando caiu do bolso, mas chovia forte. Cadê a chave?
_E agora?
_Esperar o cacete comer!
_Em quem?
_ Só em mim, dessa vez. Se eu sobreviver, darei o troco ao tempo, a seu pai e principalmente a você.
Totonho nunca mais viu Carmélia que foi levada por uma tia materna para os confins de um convento no sul de Minas. Nem ao menos as correspondências dos dois se acharam na pressa dos tempos desfavoráveis. A chave do pequenino carro não lhe deixaria mais a memória. A pressa continuou a ser a fiel inimiga da perfeição, e os amores proibidos, castigo para tão lúcidos corações de entes enamorados. As lágrimas da lembrança do que ficou para trás desfeito, toda vez que chove no lugar, diluem-se com as águas das chuvas sempre frias das madrugadas silentes.
Carmélia faleceu aos setenta e oito anos, virgem e apaixonada. Totonho casou-se duas vezes e não pôde encontrar a mulher que sempre enxergou dentro do corpo daquela que a chave não lhe consentiu que fosse roubada.

Sonho de milagre





“Senhor, não sou eu digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”.
Senhor, não vos levo comigo para minha casa porque não a tenho. Moro num barraco de lona numa favela violenta. Lá, nem tamborete para sentar tenho. Durmo no chão, como o que me dão. Caço emprego há anos. Sempre volto para casa descontente, infeliz. Como vedes, não é nenhum mar de rosas a minha vida de cidadania.
Meus filhos conhecem mais os becos da favela que eu. Sua mãe passa o dia inteiro nas cozinhas alheias procurando trazer as migalhas que recebe, metade delas deixadas nas gavetas dos coletivos que precisa apanhar para se adequar ao seu ir e vir.
À noite, ouço os tiros demolidores, o trotar dos pés assassinos dos meus irmãos favelados e a dor da morte nos gritos escassos que nos amedrontam. Meu medo já me é ralo, diluído pela repetição das cenas de violência do dia-a-dia favelar. Lá, os mansos morrem por último porque se escondem do palco do medo.
Minha fé, Senhor, continua viva. Ai de mim se não a alimentasse. Quando me humilham, lembro-me de Vós; quando tenho fome, adormeço ao ouvir vossa voz no vento. Meus filhos já não me pedem o pão, acham-no, e eu acho que é vossa mão santa. Minha esposa nada me cobra. Tolero seu adultério porque é com parte dele que ela mantém a casa onde vivemos estranhamente. Como vedes, a vida me é desigual a de tantas outras favelas. Não possuo outro herói que não Vós.
Como posso chamar-vos para que adentreis minha morada? Apenas falais e tudo será feito segundo vossa ordem.
O que peço? Não sei dizer. Não tenho feito nada de bom para o mundo. Acomodei-me a pedir e pedir e, por tanto encontrar o que peço, deixei que a vida me levasse como todo o dia que se torna noite e que se finda quando já nasce outro sol e eu me vejo nas ruas a pedir tantas outras coisas ao povo do mundo. É o renovar-se de minha miséria, Senhor.
Ontem, quando cheguei em casa, nada encontrei. Meus filhos haviam morrido e estavam soterrados. Minha esposa, ao tentar salvá-los, morrera também. Eu não tinha mais o barraco, os filhos que amei mesmo com o meu descuidado gesto de cuidar.
Senhor, foi justamente hoje que senti vossa presença amiga e me lembrei de que necessitava de vós e que só por vossas mãos poderia ser servido. Necessitava do alimento da alma. Olhei para o barro frio e molhado que guardava os corpos deles, abri os braços, deixei que o vento me beijasse e, olhando para os olhos da chuva que ainda caía, disse: como posso chamar-vos Senhor, se já não tenho casa, já não tenho filhos e esposa, já não tenho saúde para correr às ruas a pedir o alimento do corpo?
Senti uma mão no meu ombro direito. Ela pesou. Era um homem de uma face mansa, olhar protetor, espírito que me falava sem palavras. Perguntei-lhe. Quem és?
_Tu me chamas sempre. Mas tua vida estava escrita. Deixei que as coisas acontecessem e então, após tudo, resolvi mostrar-me a teu coração.
_Quem és?
_Sou o que sou.
_Então, Senhor, não sou mais digno que entreis em minha morada porque ela não me é mais hospitaleira. Mas, se quiserdes, mandai que este barro saia de cima dos meus e aí tornarei a pedir-vos vossa entrada no meu barraco tantas vezes queira.
_Tudo te será feito. Anda, deixa que teu sono seja teus passos. Dorme e que teu despertar seja uma fogueira cheia de mel silvestre, porque tua fé fez transformar tua morte em uma vida. Eis que ressuscitaste entre o sono e a vigília.
Lembro bem que quando acordei e vi minha esposa e meus dois filhos deitados a dormirem do meu lado, não entendi o que de real me havia acontecido no sonho. Mas me foi real tudo isso. Só um milagre de Deus me convencerá do contrário.
É por isso que todos as noite, antes de deitar, eu ponho meu rosto entre as mãos e digo:
“Senhor, não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”.
Continuo morando na Rocinha, a sentir desgosto e a dormir com Deus no coração. As balas têm me assustado muito, ainda não consegui emprego, meus filhos continuam a passar o dia todo na rua e minha mulher a fazer o que jamais pensasse poderia fazer um dia...

A reportagem






Contramandada por sua razão, ela me veio como um uranólito sem saber da verdade. O publicado a havia ferido espiniformemente, como florão estaqueado no teto literário de um grande circo armado para se ler como um mural decepador. Eu não havia feito nada daquilo. A imprudência, talvez socavada por uma ordem rasteira chegada no silêncio de um bastidor sem alma de alguém ávido por discórdia, o fez desacertadamente. Li como uma feroz torroada, não pelo nome dado ao autor da matéria, mas pelo que isso podia gerar diante da leitura que deveria ser feita por Talma.
O matutino publicou os elogios a mim, como se tudo houvesse sido feito por ela. O silêncio de sua ausência na cidade me fez pensar que havia gostado do que lera. Mesmo assim, liguei para ela várias vezes a fim de esclarecer que apenas um erro de uma digitadora causara a inversão das autorias da matéria.
Quando já havia se passado duas dúzias de dias, liguei novamente para tentar ouvi-la. Como a emoção tem o poder de ferir-nos e desagregar o que às vezes pomos nas mãos para ofertar a outrens! Sem sucesso, a conversa que pensara se faria dos dois lados do fio telefônico foi interrompida por ela, com uma desgraciosa pancada do aparelho que me chegou como a tronchura de um desrespeito. Um amigo seu que estava ao meu lado ponderou:
_Dissimule. A idade causa à alma esses desacertos também, e o corpo, às vezes, age desinteressado em ser cortês no susto que a emoção lhe faz.
Eu ouvi triste, fiquei a pensar na dor recebida com o aviso daquele gesto e, súpero, meu pensamento me pediu que esperasse a noite, olhasse as estrelas, contemplasse a lua e só depois fizesse o viramento do que imaginava pensar fazer contra aquela criatura.
Li e reli a matéria que me parecia uma obra de arte. Na voadura pensante que dei, não entendi o porquê de tanta mágoa de Talma em não aceitar aquele doce equívoco. Seu nome era forte, a matéria bonita e bem feita. O que lhe faltara para tê-la motivado expelir uma ira discursiva tão amarga, feita para ser mostrada a tantos?
Dois jornais publicaram a matéria a seu pedido. Aconselharam-na outras almas pobres e amarradas às sermoas que seus ouvidos tanto ouvem. Um incômodo escaldador me fez dirigir ao jornal que primeiro havia publicado a matéria; Nenhum editor jornalístico rega a desculpa que carece ser impressa para dizer da correção de algum erro. Isso maltrata o andar das outras folhas em que sucedem os fatos. Reconheciam o erro e não publicavam as merecidas desculpas a mim, esclarecendo a grande culpa de digitação como vinda de uma funcionária que talvez nunca saiba o mal que nos causou.
Passados alguns dias, minha alma, no caminho da pacificação e do esquecimento, encontrou-se com Talma em casa de um amigo querido. Meu coração saltou de alegria. Queria beijá-la e dizer-lhe que aquele equívoco não poderia jamais afastar-nos porque a espiritualidade forte que parecia nos congruir, era o elo de nossa irmanação.
Amigos me levaram até ela; a rede balançava vagarosa, seu corpo senil brigava com a gravidade para se levantar e eu, com um coração cheio de braços, disse-lhe:
_Deixe que eu a levante daí, beije sua face e converse como seu amigo, já que nada diferente disso fora outrora. Eu lhe quero bem. Jamais faria o que você leu e entediou-se.
_Cuide em retratar-se!
_De quê, minha querida?
_Da matéria em que você perversamente pôs o meu nome como autora. Eu não costumo agradar a ninguém com palavras tão generosas. Meu jeito de escrever é outro! Cuide em retratar-se e logo! Você ainda não foi interpelado pelo meu advogado? Se não, aguarde-o!
_Entendo que assim não chegaremos a conversa alguma. Fere-me falando desse jeito, logo a senhora em quem eu punha um bom naco de admiração.
_Pois é! Antes de publicar meus dois artigos, procurei saber sobre você entre meus confrades e eles foram unânimes em dizer que você, para subir na vida, é capaz até de passar por cima de sua mãe.
_A senhora acreditou no que lhe disseram, dona Talma?
_Acreditei em tudo, seu filho da p.
Senti o céu desabar sobre mim. A quase centuriã transfigurou-se, falou palavras desconexas, me descontentou e fez-me chorar de tristeza porque não respeitara a mulher-mãe que me trouxera ao mundo, a qual já tendo perdido a carne, permanece vivíssima dentro de mim. Uma mulher que, apesar de morta, ainda me conduz nos passos da minha estrada.
A partir daquele dia pude ter a certeza de que o joio pode se fazer de trigo e criar inventivas inverdades a ferir-nos profundamente diante dos açoites das línguas mais que obscenas, imundas e infames.
Talma envenenou-se dias após. Tragou do ar quente e mesquinho que elevou seu corpo na voadura dos que morrem ainda vivos. O meteoro passou e se espedaçou nas areias desérticas do seu coração que falsamente anunciava uma coragem de ser boa e de servir: uma alma singela.
Todas as noites rezo para Talma sem me descuidar da traição do sono pesado que sempre me chega no imediato deitar do corpo. Não posso jamais esquecer-me de servi-la com minhas orações e segredar para Jesus que um jovem como eu, agora na lucidez que meu corpo presenteia, um dia poderá ser um centurião e ter na esclerose natural dos vasos sangüíneos o hipofluxo do oxigênio que sorrateiramente tira dos escritores a fluência dos dedos quando querem escrever as palavras mais belas e flóridas.
Talma foi posta neste conto como uma flor em que pus asas, virou pássaro e só pôde chegar ao meu jardim lá pelas madrugadas, no silêncio de nossas desculpas, quando nos abraçamos novamente e sentamos para preparar uma linda matéria jornalística, não para um jornal apenas, mas para a vida dos que lêem muito e assim sabem que perdoar é amar duas vezes, e por isso vivem entre nós nesses nossos sonos que, volta e meia, voltam.
Para você, Talma, meu beijo, embora só possa fazê-lo com essas palavras, porque não sei se você já pensa como este escritor que apenas se lembra do que lhe aconteceu, mas não mais das palavras assombradas que sua boca expulsou no estaqueado de uma emoção que não pode ser nem moldura do viver, nem um mostrável retrato.
Para nós, acho que há duas doces cruzes, porque os recomeços podem nos apontar fantásticas viagens e um broto vergado pode crescer forte e produzir doces frutos para mais de uma alma saboreá-los.
Venha, Talma, porque não há mais soluço de dor, mas uma saudade triste de uma amizade perdida. Continuo sendo um imenso urso panda, cheio de purpurina para enfeitá-la hibernando, mas tendo ao alcance da mão um pote cheio de água fria para lavar sua língua e matar sua sede. Mais uma vez, desculpe este João que não consegue fazer inimigos: afinal, junho e julho são os meses em que mais lembramos esses nossos santos, os Pedros e Joãos sem nos esquecermos de que, em agosto, o frio é bem maior para quem repousa solitário e triste. Eu nunca fiz o que imaginou a sua cabecinha que não pensou antes de retirar a flor tão firmemente posta no vaso que você quebrou de forma tão brusca. O jardim eu reguei para você. A flor era sua. Nossas palavras nos feriram muito!




Deus seja por nós.

Zezinhos e zezinhos



O caramujo se ia, menino mole e branco escondido no casco também frágil: um, anteâmbulo do outro, numa história alquebrada ao perigo. Passinhos tão meigos à procura do sol morno para se abrir vivo e resplandecente. Um torvelhinho de uma carne alva, quase translúcida, se contorcia deixando o casco calcário cheio de formas de bicos e ocelos. Vivia esse velho molusco no seu próprio latíbulo, opíparo leque, às vezes aberto para o tempo morno do sol e ao lado do frescor do vento. Um caramujo que me parecia inocente: todos ledos enganos.
Cada vez que eu me sentava às margens do rio, olhava na direção daquele lajeiro enorme e via, meio molhado, meio enxuto, colado na pedra pela baba grossa que brotava de suas entranhas, meu amiguinho de aparência tão frágil mas que guardava dentro de si minúsculas cercárias apavorantes que tanto mal podiam fazer-nos no simples encontro com nossa pele, em um não tão saudável banho de rio de interior, coisa por nós tão desejável.
Zezinho nunca vira naquele animalzinho tão frágil qualquer perigo. Mergulhava no Mundaú para lavar até a alma. Bungava com as mãos nas tocas das pedras atrás de pitus, mergulhava no mais fundo do rio, saltava de lajeiro em lajeiro e, vez por outra, dissecava com a ponta dos dedos dezenas de caramujos moles que, distraídos, tomavam o banho de sol mais forte do começo de tarde.
Caramujo escancarado, água morna, cercária aproveitando para passear nas águas mansas do rio e o mal que os olhos não podiam ver e que o pensamento do moleque não cria, ganhava grandes pernas. Aquele mole mal era tão duro de acabar-se!
Passaram-se os anos e encontrei Zezinho já homem feito, casado, pai de onze filhos; um carroceiro anônimo de União dos Palmares.
_Quanto tempo, Zezinho e nos pomos frente a frente. Mais de trinta anos se passaram e estamos aqui.
_Mas o senhor, doutor, está sadio, corado, barriga fina e batida como a de um atleta. Olhe pra mim!
Zezinho era um “Jeca Tatu” do vale do Mundaú. Aquele mole e falsamente inofensivo caramujo era o casulo que hospedava as cercárias que nada mais eram do que as precursoras da Xistose. Nas águas mansas e mornas do começo de tarde, o Mundaú ficava cheinho delas, saídas das entranhas do molusco e daí até o contato com a pele de Zezinho, um pulo gostoso. Saía da água, coceira leve nas pernas e no resto do corpo e era esse o sinal de que os peixinhos do mal já haviam penetrado na pele de todos os Zezinhos que gostavam do mergulho no velho Mundaú, como aquele que acabara de encontrar. Encontrei-o amarelo, barriga imensa, cheia da água da doença, olhos fundos, pele esverdeada, braços finos, pés inchados e passos difíceis: parecia que as pernas lhe pesavam cem quilos, cada.
_Ainda toma banho no Mundaú, Zezinho?
_Todo dia! Fiz uma puxadinha de palha de coqueiro na beira do rio, atrás de casa e lá mesmo faço minhas obrigações e o rio leva. Mergulhar mais não: tiro a água do rio com a caneca e me banho.
Zezinho morria a cada dia e espalhava a doença quando ia banhar-se na beira do Mundaú. Os ovos do schistossoma em suas fezes eclodiam no contato com a água suja do rio, e caíam nela outros serezinhos que corriam para junto do caramujo aberto e, sem lhe pedir licença, adentravam nele e, no seu corpo mole, viravam cercárias que, nos dias de sol, água morna de começo de tarde, saíam a nadar procurando pernas para beijarem e, encantadas com os beijos, só saíam do corpo dos Zezinhos quando novas fezes cheias de ovos caíssem nas águas de trás de casa no banheiro que um deles havia feito.
A China convocou a população para, durante um fim de semana, catar os caramujos da espécie que reproduz a cercária que causa a esquistossomose. Fizeram um banquete com os moluscos recolhidos das águas dos rios e lagos chineses. Erradicaram a doença num sonho gastronômico. Que lindo! País sério este!
E no Brasil, como é feita a coisa? Eu sei: os rios correm vagarosos, assoreados e sujos e neles os caramujos proliferam despreocupadamente. Lajeiros imensos são palcos de exposição desses caramujos que, ao banharem-se, continuam mandando cercárias passear nas águas do rio e estas sempre acham os Zezinhos dos beira-rios que deviam estar nas mansões dos atletas da saúde, aqueles que freqüentam os gabinetes políticos luxuosos e que podem decidir pela erradicação dessa doença miserável conhecida entre nós pela alcunha de xistose.
Uma liderança forte que possa convocar a população das áreas infestadas por esses caramujos para se construir um banquete à brasileira, não creio que haja sob o céu brasileiro. Em lideranças comprometidas com um trabalho mais prático e sério do que teatral, também não acredito.
O que conheço mesmo, e dá dó, são velhos cientistas da melhor estirpe, aposentados e tristes por não estarem participando de tantos banquetes possíveis de serem feitos e, com isso, erradicando as mazelas que cronificam doenças nos corpos inocentes dos nossos legítimos cidadãos, para que grandes interesses escusos possam vender ao país, cada vez mais e por muitos anos, drogas caríssimas que embriagam os caramujos da vida mas não matam as cercárias do dia-a-dia. Sabem o porquê? Por que Zezinho não pode morar fora das margens do rio e ter uma casa saneada. A saúde do Brasil, falo da saúde política, bem que merecia acabar com os “zezinhos” dos gabinetes luxuosos, para deixar viver os verdadeiros Zezinhos que, nos prenúncios de seus gemidos, aguardam com dor o presente que um dia possa torná-los verdadeiros cidadãos, de peles róseas e barrigas batidas, como atletas da cidadania.

A cruz da dançarina




Era uma sexta-feira comum como qualquer outra e, extraordinariamente, eu estava, pela manhã, no meu consultório. Um amigo me ligou e fez um pedido: queria que eu atendesse a uma dançarina de uma banda sertaneja que, segundo ele, estava mal e em uma péssima situação financeira. Atendi-o prontamente e o orientei a levá-la às dez horas, ao consultório.
_Mande entrar a cliente.
Entrou na sala uma mulher muito jovem, cabisbaixa, com o corpo em posição de defesa para tudo o que via à sua frente. Vestida num tailleur cinza, lábios bem pintados com um batom discreto, cor bege, cabelos um tanto descuidados.
_Bom-dia, doutor.
_Bom-dia. Sente-se. Vamos conversar. O que lhe trouxe até aqui?
Passei aproximadamente uma hora em anamnese com aquela jovem, o suficiente para saber que nada sei ainda das cruzes que pesam nos ombros do povo do mundo. Profissão: dançarina; idade: vinte e seis anos, nome do pai?
_Doutor, eu não tenho pai.
_Como não tem? Você é um clone?
_Não. Explico: minha mãe tinha dezoito anos quando foi estuprada por um jovem violento. Morto pela polícia, ela nem teve tempo para identificar seu cadáver. Não sei quem era nem onde morava e quem são seus parentes. Minha mãe tornou-se alcoólatra e eu procuro vencer a minha solidão profunda, dançando. Já tentei matar-me, mas na hora H não achei a coragem. Danço para afastar o medo que tenho de minha existência.
_Mas, você está aqui com alguma queixa, não é?
_Sim, Claro! Tive uma crise de epilepsia enquanto dormia e cortei um pedaço da língua. Não estou conseguindo dançar nos shows do cantor que acompanho. Sinto câimbras nas panturrilhas. Ganho quarenta reais por cada show que faço. Se não os fizer, vou morrer de fome. Estou aqui para que o senhor me tire essa inchação nas pernas e uns tremores no corpo que venho sentindo ultimamente. Estou deveras debilitada.
Uma jovem bonita, corpo atlético, carregando um fácies de sofrimento, cruz pesada que um dia a vida lhe ofereceu. Queria tão pouco de mim, tinha tanto amor no peito dolorido recém-maltratado pela perda de um grande amor que lhe valera para esconder sua tristeza por mais de dois anos. Ele era dançarino no mesmo grupo e hoje estava de caso amoroso com outra amiga também dançarina.
A vida nos é por demais esquisita, cheia de mistérios poucos sondáveis, anteparada por uma cortina grossa e fosca; jardim para uns, deserto para outros. A felicidade tem ponteiros vagarosos que vez por outra param e não nos adianta dar-lhe corda para funcionar. Pára, fere e, só no caminhar da cruz, cede, algumas poucas vezes, para nos aliviar, quando parecemos estar já tão perto da morte.
Não sei como as pessoas que não têm Deus dentro de si conseguem sobreviver a esses pesadelos horrendos. E quando necessitam dançar com a cruz nos ombros? A dançarina X é um bom exemplo dessas criaturas. Veio à procura da salvação, mesmo sabendo que a sua grande cruz, dada pela mácula feroz de ser ela a filha de um estupro, não lhe deixaria jamais de pesar ao ombro. Olhei-a emocionado ao fim da consulta e lhe perguntei:
_Diga-me dez passagens boas em sua vida. Alguns momentos felizes que você teve.
_Será que acho dez deles, doutor?
_Diga-me então, cinco.
_Vou ver se acho tudo isso.
E ainda conversamos por uns vinte minutos e vi a jovem sorrir pela primeira vez quando me falou da felicidade que teve quando, no seu primeiro show sobre o tablado de um caminhão, foi aplaudida efusivamente após terminar um número de dança. Falou de um grande amor que teve e do choro feliz que sempre tem quando abraça a mãe, alcoólatra, nos poucos dias em que está lúcida e choram juntas agradecendo a Deus por estarem vivas dentro de uma mesma história.
Olhei-a no fundo dos olhos que me reverberavam sofrimento e tristeza e encontrei, não sei como, estranhas palavras para consolá-la:
_Talvez, querida, sem esse estupro que tanto a machuca no seu dia-a-dia, você não tivesse vivido esses momentos felizes que você acabou de contar-me. Dizem que todo mal traz um bem. Aprenda a tirar sua cruz dos ombros, ao menos enquanto estiver no palco a dançar ou abraçando sua mãe nos seus poucos momentos de sobriedade. Compreenda que são tantos os que carregam cruzes pesadíssimas, que a sua pode tornar-se pequenina diante delas. O que notei em você é que parece que não tem amor por você mesma. Quando a gente não gosta da gente, é somente a cruz que gosta e aí, pesa tão profundamente que faz calo até na alma e o médico não pode curá-la sozinho. Eis aqui alguns exames para você fazer. Retorne-me com eles
_Mas eu não tenho dinheiro para fazê-los.
Liguei para um amigo querido e ele se prontificou a atendê-la gratuitamente. E feito tudo isso, senti que minha cruz estava levíssima nos ombros, por dois simples motivos: conhecia meus pais e era eu quem a estava ajudando. É bom aliviar o peso da cruz alheia,quando achamos dentro de nós essas forças misteriosas que só podem nos chegar, vindas de um Deus protetor e vivo que parece habitar sobre nuvens doiradas do mais puro amor. Sobra-me tanto fôlego ainda, não porque a minha cruz seja tão leve, mas porque meu coração é uma alavanca cheia de sentimentos bons que me dão forças para suportar as dores alheias que porventura cruzam o meu caminho, também cheio de dor.

A família






_Conversa puxa conversa e a gente termina falando do que deve e do que não deve. Você sempre me envolve com suas frases pré-fabricadas. Não posso esconder o quanto o admiro. Meus olhos por si só denunciam esse sentimento. Pecam demais quando olham para seu corpo muito embora cresçam quando encontram os olhos de sua alma e com eles navegam em busca dos nossos belos momentos.
_Mas eu sou o culpado por tudo.
_A culpa, toda ela, atrela-se a nossos preconceitos. O que é bom ou certo para nós nem sempre o é para os outros.
_É desculpa sua. Você não quer que a coisa morra. Entre nós isso é navalha afiada que corta até o vento.
_Navalha atrevida e louca!
_Mas não deixará de ser navalha, nunca, meu amor.
_Desejo-o assim mesmo. Amo-o: seus olhos, sua carne e sua alma. Não se culpe por isso.
_Uma família é um monumento à tradição. Um povo recolhe-se sob a força de sua figuração social. É dela que tiramos a essência de nossa convivência. Quando saímos de casa, um pedaço de sua sombra fantasmagórica nos acompanha. A família é um grude que nos endereça ao convívio social das ruas e das outras casas. A nossa parece ser a mais forte de todas as outras que já conheci. Meu pecado é ver você com outros olhos que nunca pude entender onde os encontrei. Você afia minha navalha e me corta com ela como se eu fosse um bêbado que nunca bebeu o espírito do vinho.
_Amir, o pior pecado que poderemos encontrar dentro de nós é aquele que não pode ser guardado em nossas almas como bom para você e para mim. O que gostamos de fazer é o que nos faz bem. Se é ruim para os outros, paciência; é bom para nós. Para eles é um pecado? Pouco me importa!
_Maria, a concepção que temos até de nós mesmos é como a navalha que cremos ser: corta com as duas faces, onde deve e quando não deve. Conceitos são feitos no arranjo dos discursos. O limite do que podemos é tênue ou extenso a depender dos nossos preconceitos. Não posso continuar alimentando esse nosso romance!
_Mas eu o amo, Amir, como nunca fi-lo antes. Dependo de suas entranhas suculentas. Vou morrer, sem tê-lo. Sua alma é quem dá a cor e o cheiro de seu corpo. Seu perfume é agridoce como eu sempre o desejei. Nossos corpos são um do outro. Nossa cama é farta de nós e não cabe mais ninguém que não nós dois. Não se importe com o que somos.
_Você faz o seu próprio furor. Tenho medo de sua alma. É corrente que amarra até as palavras do meu silêncio.
_É porque descendemos de um mesmo tronco de sangue. A irmandade faz essas coisas existirem.
_Tenho medo, mana.
_Mas não se esqueça da força dessa mulher que há em mim. Possuo armas terríveis!
_Sou um homem frágil, fisgado por seus olhos valentes e audaciosos.
_Mais sensual do que isso que você me disse nesse instante, nunca ouvi antes, creia. Não me deixe só.
_Valente, mais que tudo. Você é quanto maior quiser ser.
_Por quê?
_Porque inusita e fere, beija e morde, dá-me de beber da água fervente do seu corpo. Fico com a boca aftosa do seu veneno fumegante. Não sou mais eu somente. Você preencheu até meu fôlego. Acho que já me basta viver.
_Não o deixo morrer. Não respondo por ninguém. Não somos mais corpos e almas. Somos sombras perdidas nos desejos. Provar um ao outro, na prima vez foi nossa maior ousadia. Adoecemos depois de termos feito.
_Por quê?
_Porque, meu irmão, a vida é isso também. Desviamo-nos desacertadamente ou enxergamos o que cega outrens.
_Nossa família ruiu!
_Para mim cresceu. Nossos pais são os que vivem a defender. O que menos me importa hoje é uma religião. Meu Deus é de carne, macio, sem ossos. Gosto de pensar nele como um vulcão em insônia constante. Suas lavas são meus goles de desejo. Amo-o quando em franca erupção. Tenho medo dele, também. É poderoso.
_Você não tem medo sequer de ter medo. Há muito exagero nos seus sentimentos. É furiosa, urra para esfregar seu corpo noutro.
_Não! Serve-me apenas o seu. Sou sua loba. Quero-o meu filhote faminto para mamar até nos meus dedos e nunca envelhecer.
_Eu preferiria ficar com a força de nossa família.

_E da navalha dela, não tem medo?
_Nunca tive. Você me fez perder um bom pedaço de minha auto-estima.
_Não recue, Amir: eu mato você!
_Já morri faz tempo. Só os vermes incestuosos desses nossos sentidos é que me ressuscitam diante dos seus olhos.
_Nosso orgasmo é diferente, eu sinto isso.
_Ele é feroz, isso sim.
- Irmão sente o que os estranhos sentem entre si. Se não nos conhecêssemos, nada do que quer me impedir agora, existiria.
_Você se esquece de que participamos de uma sociedade cheia de regras.
_Até nós as temos. Quando fazemos amor, só nos serve a escuridão da noite. As estrelas nos catucam. O vento não passa entre nossos corpos e nossas almas são foliãs astutas que desvendam as magias do Cupido. Somos diferentes de todos. Não vejo o porquê de você preocupar-se com a censura diferenças dos estranhos.
_Maria Nilza, não a quero mais como amante.
_Então, sendo assim, dar-lhe-ei o que minha vontade manda. Não quero deixar de ser possessiva. Prefiro bater, muito embora apanhar também possa vir a ser o meu forte: é só escolher outro irmão, diferente de você.
_Não se precipite, mana...
_Eis o que você merece há séculos.
Era uma sexta-feira. Chovia fino e a tarde estava escura. O Sol havia se apressado para esconder-se no céu e por isso a Lua apontava no firmamento antes que a noite descortinasse com as estrelas para lhe fazer um fundo de palco perolado e cintilante.
Amir não foi necropsiado. O dinheiro dos Carvalho comprou a dignidade e a técnica de que precisou. A família enlutou-se num falso suicídio e ficou dele a lembrança errada de alguém que nunca fora frágil, mas enfrentou a morte e até nela foi incompreendido.
Maria chorou por dois lutos na igreja matriz. Suas lágrimas eram bicolores. Suas mãos trêmulas e sua vergonha contida entre elas falavam sem achar olhos que pudessem ouvir os seus gestos denunciantes de sua primeira miséria realizada.
Onze anos depois eu e meus pais soubemos que ela havia degolado nosso irmão caçula, Jorge, e que tinha sido presa em flagrante delito. Só minha mãe foi ter com ela à época. Nunca mais a vimos, nem atrás das grades justas que, sem bocas, falavam as verdades que não ficaram em sua alma. Maria nascera para ser diferente. Do presídio foi ao nosocômio judiciário e lá morreu aos trinta e nove anos, enforcada por uma companheira de cela.

A primavera dos cegos





Numa calçada fria, suja e desolada, vi um cego a pedir esmolas a anjos e demônios que mais pareciam desfilar em passarelas perfumadas de fartura. Quão fria e desumana era essa calçada na qual havia um homem sem a permissão de ver o Sol nem a Lua, nem o claro o escuro nem um vulto sequer. As moedas que caíam na cuia eram escassas. Alegrava-se quando tiniam algumas delas. Ao apanhá-las, por seu peso ou tamanho, sabia seu valor exato e as escondia no bolso fundo do paletó esfarrapado, único ser que ainda o abraçava.
Possuía raros fregueses, desses que nunca se esqueciam de pôr algumas delas, às vezes até em suas mãos. Conhecia alguns pelos nomes. Um deles, Abraão, sempre lhe dava um bom-dia forte. Mesmo sem enxergar o seu rosto, via que seu coração estava sorrindo satisfeito com a vida, quando lhe dava esmolas. Diariamente cruzava a mesma calçada e o cego lhe sentia o cheiro gostoso, os passos mansos e ritmados. Nunca lhe disse quem era ou o que fazia.
Lembro-me de que certa vez reclamou que até as esmolas estavam escasseando. A miséria estava em recessão. Não lhe respondi nem que sim, nem que não, mas ficou comigo o compromisso com a solidariedade humana e me fui. Passaram-se duas semanas até que pressentisse o meu retorno. Nesse intervalo, misteriosamente, as esmolas se multiplicaram. Cá comigo eu me perguntava o porquê do acontecimento extraordinário.
Indaguei-lhe sobre a mudança e ele falou que ela iniciara após Abraão ter-lhe trocado a tabuleta onde havia escrito cego de nascença. Ao perceber que a nova situação tinha se mantido, dirigiu-se a alguém que lhe deu esmola.
_Senhor, podes ler o que existe neste papelão que seguro firme à minha frente?
_Pois não!
_Então diga-me, o que ele quer dizer!
_“É uma pena que não posso ver as flores da primavera”.
_E foi isso então?
_Isso o quê, ceguinho?
_Nada. Deus o acompanhe, assim como acompanha aquele regador de jardim que, todos os dias, põe água no galho seco de meu coração, que só hoje passará a abrir seu botão de amargura, para que, vendo-o, outros pensem nas flores de uma primavera que dela nunca nem sequer me lembrei. Como deve ser ajardinada a alma desse ser tão benevolente que me visita e que até na sua ausência me enriquece duplamente! Acho que ele carrega n’alma as quatro estações da vida, e seu sorriso nada mais é do que um arco-íris escancarado de brilho e de amor.
Cada cego pode ter, dentro de si, quantas primaveras quiser. Uns são botões, outros galhos secos, outros flores vingadas, outros pétalas murchas, mas todos eles podem ter jardins floridos dentro de suas almas. Basta apanhar a água da vida, sorrir para o dia e aguardar que a felicidade chegue com a primavera que nunca se esquece de preceder o verão.
Os olhos do ceguinho, embora murchos, podiam ter todas as primaveras que quisesse. A verdadeira esmola que recebera, foi poder enxergar com o coração a primavera adormecida por trás de sua cegueira que só conseguia ver o valor das moedas que lhe eram oferecidas como esmola.

À espera de um amor




As coisas da vida, as cenas românticas das quais ouvimos sempre falar parecem estar sempre bem distantes de nós. Nunca acreditamos que possam acontecer conosco. Mas o senhor destino, mestre das implacáveis cenas da vida, presenteia-nos com certos dramas, às vezes sacralizados por nossos sentimentos, outras vezes mortais. Clara foi vítima desse senhor. Sorriu e chorou numa longa espera que lhe trouxe tantos dissabores e um fim muito pior que o começo e o meio de tudo.
_Alô? Adalberto?
_Oi, Clara, tudo bem com você?
_Agora sim! Notícia boa? Quando vem à Maceió? Estou morrendo de saudade de você.
_Não sei, querida. A notícia não é lá tão boa. Estou viúvo! Elma se foi e tão rápido.
Adalberto e Clara haviam se gostado platonicamente durante a infância. Na adolescência, com a permissão dos pais, chegaram a namorar-se. Parecia que o destino não se interessava pela união dos dois e ele viajou para fazer sua vida em São Paulo. Ela ficou guardando o carinho que tinha por ele.
Passados vários anos ele lhe escreveu mais uma vez afirmando o seu carinho especial por ela, porém informando-lhe que havia se casado novamente. Clara, mesmo entristecida com a notícia, resolveu esperá-lo no futuro. Acreditava que um dia o teria como companheiro. Não o esquecia. Adalberto era o seu príncipe encantado, brotado dos legítimos contos de fadas e que tinha que estar dentro do final da história que dormia enraizada no seu inconsciente. Ele viveu pouco tempo com sua esposa. Perdeu-a em um trágico acidente automobilístico. Quando ela soube da notícia da sua segunda viuvez, esperançou-se ainda mais em tê-lo. Ele veio a Maceió, esteve com ela, chorou em seus ombros, mas retornou a São Paulo. Talvez ainda não fosse o momento exato para os dois. Águas ainda haveriam de correr em suas vidas.
_Meu Deus, já vi que nasci para sofrer na busca de um grande amor. Adalberto de novo casado! Por quê? Eu não lhe sirvo como esposa? Por que não me diz? O pior é que não consigo esquecê-lo. Vou esperá-lo mais. Não lhe desejo outra viuvez, mas vou regar minhas esperanças de ainda ser sua esposa. O outro casamento havia acontecido. Seu sonho estava mais longe ainda. Mas ela o amava muito.
Clara sempre falava com ele. Escrevia-lhe cartas românticas que eram endereçadas a uma caixa postal quase secreta. Ele as lia e as destruía para que sua esposa na soubesse de Clara.
Ainda ia fazer dois anos de casado quando Adalberto enviuvou pela última vez. Clara soube. Uma semana após o acontecido, ela lhe telefonou: Queria-o muito.
_Beto? Alô? Beto?
_Oi Clara, sou eu. Já soube de tudo, não foi?
_Sim. E você? Muito triste? Que azar esse seu, meu querido...
_Estou voltando para Maceió, querida.
_Quando?
_Ainda este mês. Vou morar na casa de mamãe. Quando eu chegar procurarei você para conversarmos sobre nós.
_Eu estou lhe aguardando, Beto. Pessoalmente falaremos melhor. Que bom você vir morar aqui...
Clara sentiu-se quase sua esposa. Não séria possível que agora ela não o tivesse. Moraria na casa de sua mãe, ao lado da dela. Não o deixaria escapar do seu laço. Agora sim! Sentia-se quase sua esposa, mesmo.
No entanto nada disso aconteceu. Amargurada, ela desabafou com uma amiga:
_Eu olho para o céu estrelado em noites de lua cheia e vejo perderem-se os meus sentimentos. Fogem como qualquer cometa que se perde no universo. As estrelas cadentes que impregnam minhas retinas lembram-me como foi longa minha espera. Adalberto retornou de São Paulo, passou a morar na mesma casa, vizinha a minha, com sua mãe, e nós nos falávamos todos os dias. Em menos de três meses que havia chegado, casamos. Vivi este casamento com uma força tão grande, como se nunca acreditasse pudesse existir. Havia-o perdido várias vezes. Agora, não, isso não aconteceria. Era meu, só meu. Não corria nenhum risco. Engano. Quando pensei que o tinha e que o meu paraíso era ao seu lado, enviuvei. Não posso dizer que foi um sonho lindo que se foi. Era muito mais do que isso. Minha vida tornou-se um pesadelo e eu morri, quase toda, com sua perda. A tristeza havia me laçado fortemente. Que pena, nunca havia tido tempo de ser feliz ao seu lado. Eu era sua viúva, na última curva que a vida havia permitido a ele, fazer. Contornou-a e morreu. Levei a vida, amando-o, desde antes, muito embora não o tivesse fisicamete. Deixara viúva sua última esposa. Preferia sempre tê-lo ao longe, viúvo, do que ser sua viúva mais poder amá-lo. Queria-o vivíssimo, mesmo que com outras. Meu amor por ele suportaria bem tudo isso.
Todos os anos, na data de sua morte, Clara manda celebrar uma missa festiva para sua alma. A igreja escolhida, sempre a mesma, é enfeitada com flores naturais, excessivamente. Ela nunca conseguiu esquecê-lo. Lembrá-lo é como viver ao seu lado. Ela o põe dentro da alma e envolveu-o de beijos e de lágrimas; pelos anos lembrados e pela saudade de sua perda física. É como se sua história, ao seu lado, ela houvesse posto numa moldura colorida e luzidia. Sempre estava vendo-a, admirando-a, endeusando-a, até.
Parece não querer esquecê-lo jamais. Isso é o que falam os seus gestos nas celebrações que faz nos aniversários de sua morte. Quando fala sobre ele, enfeita-se com uma saudade quase heróica que demonstra sentir. Quem a vê passar nas ruas, parece acreditar que desfila. Impecavelmente limpa e bem trajada, aquela mulher guarda uma esperança que nunca pôde viver sossegada dentro dela. Sua religiosidade forte, talvez tenha lhe proibido tornar-se deprimida. Sublima nas sucessivas celebrações que faz há mais de quinze anos, sua doce dor amarga que nunca a deixou viver na plenitude de seus sentimentos de mulher, ou de esposa que fora por tão pouco tempo. Mulher das esperanças que nunca pode ser intensamente. Mulher recheada do encanto do matrimônio. Mulher da cerimônia cheia de vazio dual, da cor descolorida, do alegre que soube lhe trazer lágrimas esquisitas de uma viuvez quase solteira e de uma morte muito viva. Uma mulher, afinal, cheia da idolatria do lar que desfez-se como uma criança, da parturição não existida, da comunhão dos sexos pouco consumada, do casamento que o vento levou. Uma mulher triste e alegre, vivendo em um eterno cerimonial de uma lembrança viva. A eterna esposa viúva da vida e de uma solidão forte e eternizada noutra forma de casar-se, dessa vez com a lembrança triste.
_É uma pena que você não me possa falar com palavras agora. Dentro da covardia fria dessa sepultura, nada brota de feliz ou de vivo. Só a lembrança da tua ida desavisada para a morada dos anjos, talvez. Queria você aqui, ao meu lado, mesmo que nossa cama não fosse muito freqüentada por nossos corpos quase sem desejos. Meu amor por você foi e sempre será, mais espiritual do que qualquer outra coisa. Até o ano que vem quando eu retornar a este lugar tão triste. Vou à igreja rezar e cantar, por nós. Espere-me no céu ou em qualquer outro lugar, que um dia estaremos juntos. Espero que nesse lugar não estejamos nós seis, mas só você e eu. Meu ciúme não suportaria entregar-te novamente para outros braços que não os meus. Livre de qualquer outro amor, mesmo noutras vidas ainda desconhecidas por mim. Para elas, só orações e para você, muito amor além delas.

O menino travesso





Nem me preocupei com a queda do moleque. Estava acostumado com as suas travessuras e por isso mesmo achei que se levantaria do chão e sairia correndo para aprontar uma nova. Mas foi diferente o resultado. Minha consciência doeu ao saber do desfecho de sua triste história.
Belzinho era sacristão do padre Amaurílio. Aos domingos, na missa, lá estava ele bem paramentado e quieto. Exercia suas funções religiosas perfeitamente bem. Na igrejinha do vilarejo era um garoto exímio. Não me lembro de ter ido à missa dominical e não tê-lo visto ajudando ao padre.
Como criança saudável, sempre aprontava as suas. Não podia ver o alto-falante da torre da igreja evangélica começar a tocar e logo apanhava pedras e o acertava sob os aplausos e os risos dos seus coleguinhas de rua. O pastor calmamente saía do templo e, dirigindo-se a ele, pedia-lhe:
_Belzinho, comporte-se. Aqui é a casa do mesmo Deus de sua igreja. Ele fica triste com tudo isso que você faz. Vá brincar. Se você quiser assistir ao culto, entre. Você e seus coleguinhas.
Ele, sacudindo a cabeça e sem querer atender ao pastor, acalmava-se um pouco e saía dali à procura do que fazer diferente do já feito. À tardinha chegava em casa suado e cansado de tanto correr.
_Por onde andava, filho?
_Lá na praça, mãe, brincando...
_Com quem, meu filho?
_Com os meninos, mãe.
_Vá tomar seu banho para depois jantar e ir dormir.
_Deixe eu sair à noite, mãezinha...
_Não! A noite é tempo para se dormir. Quando você crescer, eu deixo você sair à noite.
E a noite chegava. O menino cansado de antes, agora pensava deitado na cama. Maquinava as peripécias que aprontaria no próximo dia. Não demorava muito o sono a chegar. Adormecia feito um anjo e, às vezes, o pesadelo era a única forma de remoer as passadas gravadas no inconsciente. Gritava, sorria, chorava, tudo durante o mais profundo sono.
Belzinho também tinha o seu lado meigo, belo e inocentemente feliz. Não podia ver nenhum garoto passar à sua porta com roupas velhas e rasgadas que não corresse ao seu armário, tirasse alguma das suas e a desse. Quando dona Aurora, sua mãe, dava-se por conta da falta de alguma roupa sua, gritava-lhe e às vezes até lhe batia.
Às sextas-feiras dona Aurora sempre oferecia pão e farinha de mandioca aos dez primeiros pedintes que lhe chegassem ao portão de casa. Quando as dez ofertas da promessa de sua mãe se acabavam, ele catava na dispensa o último alimento que era doado a quem nada recebera. Sob forte advertência e calado, ouvia a reclamação da mãe sobre o exagero de esmolas. Não se importava. Na outra sexta-feira não séria diferente e tudo aconteceria de novo, com ou sem os gritos da mãe.
Na escola, as notas oscilavam muito. Mês eram razoáveis, mês eram fracas. Ele não se cansava de levar bilhetinhos da diretora do colégio para sua mãe. Esta, pacientemente, vinha ao colégio, desculpava-se pelas artes que o filho aprontava e, em casa, devolvia-lhe o recado corretivo com palmadas e gritos. Nada intenso.
_Ai, mãe, tá doendo.
_Tá não, safado. Só perco a palmada que não bate no seu lombo. Isso é pra você aprender a estudar e um dia, quem sabe, ser alguém na vida.
_Ai, mãezinha, não dê mais não, pelo amorzinho de Deus, viu? Dê não, mãezinha.
Ela ouvia-o e tinha clemência. Na verdade as palmadas não eram lá essas coisas. Ele chorava por um ou dois minutos e pronto. O garoto parecia esquecer-se rápido do corretivo e em seguida voltava às travessuras de sempre.
Mas o destino lhe foi traiçoeiro. Parecia avisá-lo de que fosse bastante traquino. Seu tempo de menino e de gente deveria durar muito pouco. Calaram-se a força da travessura e a ineficiência na escola. As missas dominicais seriam agora diferentes das de antes. Seu silêncio atravessaria a cidade deixando um vazio esquisito e inexplicável. Suas travessuras não encheriam mais o vilarejo, e o pastor perderia a esperança de conquistar para sua igreja aquela almazinha tão forte.
Soube, após quase duas horas, que aquele garoto travesso que tanto ajudava o padre nas missas aos domingos, estava morto. Suas mãe havia sido alertada pelo médico do posto de saúde de que se Belzinho não tomasse seu remédio diário contra a epilepsia, fatalmente morreria. Dona Aurora sabia bem dos riscos. Havia se cansado de ir até o posto médico do município atrás do dito remédio e nunca o encontrava.
Sua situação financeira andava precaríssima. Seu marido, um desempregado da construção civil, diante do desprezo social em que vivia, afogava-se na bebida o dia todo e todos os dias. Ela, com o minguado salário que recebia como gari, tirava a metade de seus proventos e comprava uma caixa com vinte comprimidos do remédio do filho. Mas acontecia que um mês tinha alguns dias a mais e o tratamento do garoto era sempre incompleto.
Naquele justo dia, quando Belzinho saltava feliz enchendo os ares da praça do coreto, foi acometido subitamente por uma de suas maiores crises e morreu. Ninguém quis acordá-lo. Alimentavam o triste tabu de que, através de sua saliva, pegava-se o mal.
Na calçada da praça, estavam ele e seu anjo da guarda, um morto para sempre e o outro preparando a viagem da alma que não precisaria de remédios para sobreviver, nem tampouco dos benéficos de um governo irresponsável que não aprendera a tratar seus cidadãos decentemente. Eu posso lhes dizer, caros leitores, que a praça, o coreto, o vilarejo, as missas, tudo ficou entristecido com sua morte. Dentro de suas travessuras estavam imersos a força da vida e o brilho intenso de uma criança que vivia com um Deus vivíssimo dentro de si. Enquanto pulava, ensinava-nos a força da vida e, quando ajudava ao pároco, produzia as centelhas do divino. Para sua mãe, uma simples criança do mundo; paro o pároco, um aprendiz das coisas de Deus; para o pastor, uma esperança de conquista de mais uma alma; para mim, o ressonante enredo iluminado com uma porção de coisas que vi e tive quando criança, exceto o grande mal que o levou cedo à casa de Deus. Este menino viveu dentro de mim em quase tudo que fez.

Sunday, September 24, 2006

O Féretro e o Poeta.







Querida alma, com louvores este meu corpo te escreve, entusiasmado com os sonhos duma encarnação. Sei que sonhei, sem me restarem lembranças. Há um féretro que contém um corpo desalmado que antes tanto chorou para não ir embora para lugar incerto, tão cheio de bruma e obscurantismo. Eis que te dou “poema de vida” feito por um outro corpo ainda cheio de alma: faz-me esse outro como o meu, para que não me reste, ao ouvir a minha voz, saber que há nessa cidade apenas um poeta velho. Meus versos são loucos pelos versos do poeta morto. Se apenas restar-me a desesperança, lerei para o outro corpo que ainda festejam nessa sala de choros, não como as carpideiras, mas um declamador; a alma que, deixando o corpo, ainda se segura no cerco do luto dos parentes, bem que me ouvirá ela, declamando os versos que fez, por mim tão admirados. Quero falar contigo, alma sem corpo; para isso empresto-te o meu.
Não me deixes louco, alma sem boca, silenciada frente a minha dor; esse poeta que morreu, saibas, era o meu grande amor: fazíamos versos engraçados e eu sorria para assim alegrar-te, ó alma desgarrada, para quem agora falo quase morto também. Alma contra alma se pede. O féretro não pode guardar poemas de amor porque já nasceu triste e isolado, para mais ainda isolar-se no fundo d’uma sepultura esquisita, onde os vermes habitam, sem possuir as palavras.
Eis meu primeiro verso:


Alma de algodão,
ó leve duma bendita,
mortos, teus versos não gritam,
tua boca morreu.

Lembrei-me que possuem um livro de poemas que ele editou. Nada morreu do que ficou, mas eu indago: e os que ainda estavam sendo pensados? Estão frios, desacumulados; nem sobejo de rima há neles; então eu sei que morreram versos, e onde estão? Vou procurar o lugar onde os poetas mortos enterram seus versos, os que não conseguem publicar.
Choravam vozes – o único vozeirão era mesmo o dos meus versos –, menores do que a minha solitária, triste, refutando o luto, querendo readquirir a poesia do que ainda não havia sido lido por ninguém; estava apenas com a alma fugidia – antes de um corpo que sonhava, sonhava, sonhava...
Chegado o padre, quis declamar, lembrou as coisas da alma e pouco olhou para o corpo frio. Alguns irrequietos se entreolharam, xingavam o calor e, disfarçadamente, o relógio.
Ó alma impiedosa – a que chamo ou uma outra que porventura me ouça – traz-me a alma dos versos, os versos da alma: tudo. É apenas perto de meu que esse corpo chora, ri e goza, se tua alma novamente chega a ouvir-me declamando.
A noite se perdeu no escuro desluarado. As tristes estrelas do céu foram embora também, só suas lágrimas candentes choravam para se ver outros menos tristes que eu, que nem mais choravam. Declamei meu grande estoque de versos decorados à espera que a alma voltasse – tarde era, e escuro – e ela não me veio poetar.
Quando o orvalho já havia chorado na terra, o sol declamou o primeiro verso do dia. A vela ao lado do féretro mudo, bruxuleava quase finda. Nas faces das raras pessoas que ali estavam, não se viam nem as marcas dos caminhos das lágrimas.
Dou-te, ó alma sumida, um segundo verso triste, quase desesperançado: pois o sol que sobe a arder lá, quase no fim deste horizonte, fala-me de uma hora triste: a triste hora em que os que não têm mais, enterram os que nada são, os mortos. Lembrei-me do estrume que os corpos viram, temperados pelos besouros da terra que vivem nas profundezas escuras das valas de tristeza.
Ó alma ingrata, volta para este corpo tão frio que nos deixou tanto sofrimento! Para que serve a um féretro guardar um corpo de um poeta mudo que não mais viverá?
Ó alma impiedosa, donde és? Ingratidão não declama – a poesia é a voz da vida – dá-me outra vez viver, ouvindo dessa boca surda seus versos que tanto me falavam, tanto me diziam.
O sol alto queimava minha fronte e agora, de lábios secos, voz guardada num nó na garganta, levaram o féretro escuro, abafando o corpo do poeta, para o buraco cruel em que ponho o ponto final no soletrar da morte.
_Quem morreu?
_Um poeta!
_O que fazia ele em vida?
_Escondia-se de você, ó burro desvalido – inseto da vergonha, alma da escória do mundo.
_Eu sou apenas um coveiro. Apenas um coveiro...Nada mais disso que o senhor acabou de falar.
Passei a fazer versos novos e lembrar-me dos versos dele. A estrela havia se apagado cedo – meu amor morreu de sede de amor, encontrou a morte e se foi para onde não acham mais os que versejam. Cá me ficaram dois livros finos, desbotados já, como se quisessem morrer também de desgosto.
Olhei para trás ainda quando os portões do cemitério se fechavam. O homenzarrão achou o olhar triste dos meus versos que também possuíam olhos. Levantou-me a mão direita, acenou descabidante, porque eu lhe havia dito fortes palavras; disse-me:
Não fique triste. O poeta que morreu não morrerá mais. Tenho um velho jornal do ano passado que me fala dele. Agora me lembrei: era Mundano Castigo: não podia viver para sempre.
Levantei-lhe a mão sem conseguir mostrar a voz; triste e trêmulo, além de envergonhar-me, apressei meus passos. Fui embora fazer meus versos para a vida. O coveiro nunca mais saiu de minhas idéias, apenas da frente dos meus olhos. Quem sabe não sou eu um féretro que nunca soube disfarçar a morte que carrega de olhos marejados, voz triste, olho descuidado a não ler os maiores versos da vida?
Ó cemitério, o que guardas além do corpo e do féretro? Até quando hás de ser assim, desse jeito, sem saber fazer versos? Perdi um grande amor, mas um luto passa. Não : pô-lo-ei em meus versos tristes, para nunca deixar de amá-lo. Serei doravante um poeta- féretro, guardador de versos alheios para minha maior felicidade.