Literatura_Narrativa_Contos: Diva.

Literatura_Narrativa_Contos

Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Sunday, September 17, 2006

Diva.






A mulher, velha e carinhosa, ousava no seu cotidiano demorar-se assentada à porta de seu casebre por horas, a entrelaçar linhas multicoloridas, tecendo peças bonitas de desenhos arcaicos; tantas calosidades nas mesmas mãos a que, antes fidalgas, não caberia o repuxo do exercício forçado da sobrevivência, mas apenas beijos e afagos. A mulher estava a viver agora um outro tempo bem diferente do de outrora.
Pai rico, filho nobre, neto pobre. Não me lembro de quem disse essa frase antes, mas sei que a disseram e já faz tempo; eu, quando menino, cansei de ouvi-la sair por entre os lábios de papai, como se fora uma simples lição para se guardar firmemente na alma.
Diva preparou-se para casar. Seu baú continha as preciosidades raríssimas que só as prendadas moças da vila podiam ter. Ajuntavam-se ao seu redor espólios de palavras e pequenas fortunas; Diva mais que uma diva, dama o era de infeliz espera, acoitada nos abraços de perversa solidão.
Os velhos cansaram de esperar pelo futuro dela; casaram-se os seis outros filhos varões; Diva permaneceu aquietada e triste a cumprir as ordens castradoras cultivadas pela sociedade da época. Vestido longo, meias de seda, terço às mãos, missa aos domingos; sorrir só junto dos seus, nas raras festas de fim de ano, quando se acreditava que o respeito nascia e morria entre os familiares; lá fora, nas estradas do mundo, rondavam os perigos do desvirginamento e da sedução demoníaca, o que se devia evitar a ferro e brasa.
Por que não posso ir a Recife cursar Odontologia, papai?
Filha minha não se presta a isso, Diva. É lugar longe, cheio de perigos para uma donzela.
Restou-lhe o seminário no Colégio Sacramento. Neste, consumiu sua infância, mocidade e parte de sua vida adulta. Saiu dali com um minguado curso pedagógico e fora direto para a fazenda dos pais, no longínquo interior de União dos Palmares, ensinar no grupo escolar mantido em meias partes por seu pai e o prefeito da cidade.
Quando os anos de desesperança romperam a linha de certo horizonte e os velhos, adoentados, mudaram-se para a cidade, a fazenda foi tomada pelos irmãos em feroz gesto mesquinho. Restou-lhe cuidar dos cacos de pais, assentados agora numa pequenina casa à Rua do Cangote, esquecidos do fulgor do passado, perdidas as grandes amizades – morando em um mundo diferente do que lhes era merecido.
Va chamar o padre Clóvis, minha filha.Seu pai quer vela. Sua alma já está soluçando de agonia, morre já. Cuida, cuida e vai!
E meus irmãos, mãe?
Se os encontrar por aí, faça o favor de avisá-los; talvez queiram partilhar do valor do féretro. Nós teremos que nos endividar para cumprir com esse último gasto. Há um certo destino que escreve tudo.
Ai, mãe, que família diferente de outrora...
A vida nunca deixou de pôr atalhos entre as boas estradas; o desejo dos homens é labirinto perigoso que os leva a perderem até suas próprias almas. É assim..., nosso velho tem nós duas ainda.
A unção dos mortos foi dada, e o coronel Batista pôde ser levado de favores por vizinhos e dois dos seis filhos varões. O féretro balançou leve entre os quadris dos generosos que, de chapéus à mão, contavam pedaços das histórias da vida vivida pelo corpo esquelético morto que agora, como jamais desejara, era apenas servido. O remorso dos filhos os emudeceu e, a passos secos e iguaizinhos aos dos demais, cumpriam a última e piedosa missão que os vivos devem fazer para com seus mortos.
Esse velho foi um homem sério, ajudou a muita gente, elegeu muitos políticos que só vinham à sua procura em época de eleição. É isso mesmo! A gente morre e torna-se o defunto mais miserável do mundo.
Não havia mais do que vinte acompanhantes no enterro. Diva e sua mãe, as únicas chorosas, profundamente tristes. Do cemitério, os dois solicitaram a bênção da mãe e se foram. Apenas elas permaneceram no mesmo cantinho dos últimos dias onde o velho coronel Batista viveu, pobre e desprestigiado, apenas mastigando ardosa solidão que o matava a cada dia, pingo-a-pingo.
Dois anos depois morreu a velha. Para ela, as vizinhas da rua se reuniram para rezar um terço comprido que varou a noite, até que a alma saisse do corpo da matriarca. Diva alisava-a conformada com a idade cheia de amor de sua mãe, mas sentida pela qualidade de seu fim – últimos dias cheios de pobreza, quase miséria: o que antes não se pensava, o destino ser-lhe-ia capaz de doar.
Quando eu passo à frente da casa cento e dezesseis da ruazinha estreita daquela cidade, lembro a história do velho coronel Batista, homem influente, valente, generoso, cheio de vida. A história lhe reservou apenas esse conto singelo.
Diva lhe sucede: sentada na velha cadeira de balanço feita de palhinha; no colo, dois ou três rolos de lã; entre os dedos, um tricotear ágil para ter de findar o dia com mais uma peça feita e poder sustentar-se de tudo. As mãos, magras e lisas, não escondem, antes mostram as dobras virgens de uma pele que nunca pôde levar aos braços os frutos da maternidade que poderiam ter-lhe saído do ventre.
Soube por uma sobrinha velha de Diva que, antes de ela morrer, teria dito: “Resta-me, quando chegar ao
céu, cuidar do menino Jesus.” E virou-se para o outro lado do leito de morte, como se envergonhada do mundo onde viveu as dores das diferentes injustiças a que podem estar submetidos homens e mulheres. Diva faleceu aos oitenta e seis anos, lúcida, calada e triste, sem nunca haver perdido a esperança de algum dia encontrar o matrimônio.

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