Literatura_Narrativa_Contos: Um Sonho Quente...

Literatura_Narrativa_Contos

Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Sunday, July 16, 2006

Um Sonho Quente...






“O sereno da noite, escondido dos olhos pela escuridão do final de tarde, esfriava o ar ainda morno. A ema correu sem muita pressa à frente da arapuca dos preás, próxima ao oitão de casa. Nem achei tempo para movimentar a soca-tempero e acertar aquele tesouro cheio de carne. Meus olhos ficaram se lastimando de sua fuga; permaneci quieto a vasculhar o horizonte da caatinga, interrompido pelos galhos secos desfolhados do término da estação seca. Até aquela ave solitária procurava à-toa o alimento da vida. Faltava apenas Graciliano, papel e caneta – sem Baleia – é claro, senão a ema não teria desfilado sem riscos. Mas fui eu quem a vi e quem ali estava e pronto!
Os dias sempre são desiguais, não diante do tempo, impropriamente medido pelos homens, mas porque nem toda manhã é igualmente desserenada, nos verões do sertão quente que, mesmo inóspito, esconde a vida para encher a sobrevivência de seus campos.
Acordei atordoado. Meu quarto estava um forno. O pescoço molhado fingia fartura de água. Lá longe eu ouvi bater os pingos no zinco da cisterna – talvez na calha troncha que, boquiaberta, esperava tão ansiosa que as águas descessem pelas entranhas das telhas e a enchessem. Quis até gritar de alegria – seria chuva mesmo? Quando esperamos por ela ao longo de seis verões seguidos, custa-nos acreditar que é ela mesmo que ouvimos. Até sonhando poderia estar. A zoada quem sabe, não seria a areia vomitada por algum redemoinho atrevido criado pela quentura do tempo.
Pulei da cama e corri na direção da porta. Fui atrás da maior alegria do sertanejo – a água que cai do céu e devolve ao homem uma promessa de fartura e bom ano. Cadê zinco, cadê pingo, cadê chuva. Quando ultrapassei a porta, haja estrada à vista. Meu olhar ardia com o beijo do sol quente.
Cruzei seixo a seixo de veredas e estradas largas. Quando passava a procissão de miseráveis retirantes no lombo de velhos caminhões, a cortina de areia e barro não me deixava ver seus acenos. Ouvia apenas a algazarra que não representava em absoluto a alegria de uma fuga, mas a tristeza de não poder ficar-se onde se gosta, onde se ama, onde se quer ficar...
Senti sede – que nunca havia sentido outrora. Lembro-me de que caminhei até a exaustão. Por instantes de cócoras, minhas canelas cederam ao peso do corpo e dos ossos que ainda pesavam por sobre os joelhos, e sentei-me no chão mormaçado sob a copa de um juazeiro teimoso, ainda verde, ainda vivo. Os olhos escureceram o tempo e nem estava ele perto da noite. Era a voz da fome persistente. Olhei para as folhas verdes da árvore e a boca salivou; não pela fome, mas pela mania matutina de escovar os dentes com a suculenta seiva de seu entrecasca ou com a cobertura de suas sementes. Não daria certo comê-las: seus frutos estavam imaturos.
Quando o redemoinho passou, com a vista agora cinzenta e não mais negra, vi a briga de dois galos-de-campina. Pareciam trancafiados numa bola alvirrubra. Embolavam bem próximos aos meus pés. Mexi com o dedão do pé direito e vi quando apenas um alçou vôo. O outro, espantado, quase vivo e quase morto, aquietou-se a olhar-me. A ave queria morrer.
Eu carecia dele para sobreviver, ele de mim para acudi-lo. Um de nós podia morrer; ele era o que estava mais próximo da morte. Avancei para ele sem pensar, retirei-lhe as penas, espremi o bucho, retirei-lhe as tripas quase secas e de um só golpe devorei-o. A digestão foi remorsiva e longa. Senti um nojo vindo da alma. Mas fazer o quê?
O dia foi passando na calmaria do calor imenso que fazia. Nem cobra andava nas estradas anunciando chuva. Um passarinho na barriga me deixaria viver mais alguns dias. Pus-me semifarto e condenado a palitar os dentes e a olhar as pernas do dia – eram tantas.”
Dessa vez era eu quem quase pulava da cama mesmo. Tudo para trás desse horizonte era sonho. De tanta fome que estava quando fui dormir, alisou-me esse pesadelo. Levantei-me, fui à porta, abri a parte superior e vi o sol que ao menos havia nascido e já secava quase tudo o que beijava – até a água enlamaçada do barreiro da frente de casa. Cadê pingo d’água, cadê chuva: a calha, penca e quase a cair, ardia de quente. Foi então que vi que aquele dia que nascera, seria apenas um outro da via-crúcis que tínhamos que atravessar para tentar vencê-la. Mas não deixaria o sertão por nenhuma enxurrada noutro destino. Por aqui o sonho mostra quase sempre o que esperamos e parece nunca chegar.
Ao meio-dia fugiu outro punhado de desconsolados do sertão. Foram para os lados das Minas Gerais. Duvido que se acostumem. Pode até ser que sim..., mas, quando arrumarem qualquer tostão e puserem no bolso, é só deste solzão sertanejo que se lembrarão e para aqui sempre retornarão. Aí, vão tornar a sonhar como eu e viver a esperança da fartura de água e de sonhos.

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