Literatura_Narrativa_Contos: Beatriz

Literatura_Narrativa_Contos

Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Friday, July 14, 2006

Beatriz



E então despedi-me cedinho, antes mesmo de ouvir o segundo canto do galo. A madrugada estava friorenta, o silêncio da relva, amedrontador. Mesmo assim saí sozinho sem poder contar meus passos, dado a pressa de tão bom tamanho era. Nunca mais vi Beatriz. Acho que foi morar do outro lado do mar, ou n’alguma ilha deserta, onde jamais poderíamos nos ver novamente.
Lembro-me de que estávamos em junho, mês de férias, época das festas juninas, muita alegria. Minha roupa nova estava pronta. Iria cortar os cabelos na barbearia do senhor Juca e, no dia seguinte, muitas bombas me esperavam. Eu adorava essa época do ano. As fogueiras acesas me hipnotizavam. Os estrondos das bacamartadas não me incomodavam, apesar de serem eles ensurdecedores. O milho verde, o chapéu de palha, a melodia dos acordeons que davam alma às quadrilhas, tudo isso era mesmo encantador.
_Em São Paulo, vocês não fazem fogueiras?
_Na capital, não. É perigoso, muitos fios na rua, moramos em altos arranha-céus, é complicado. Aqui, não, vocês têm muito espaço.
Os olhos de Beatriz tinham um brilho diferente. Queriam falar-me alguma coisa importante. Não aceitou ser presenteada com nenhum fogo e eu, tão jovem quanto ela, não entendia sua repulsa pela época e seus festejos barulhentos. Distanciava-se de todos e, sentada ao meio fio, cabisbaixa, não se divertia como nós, ao ver a fumaça cheirosa e as fagulhas brilhantes que saíam dos vulcões que soltávamos em cima do banco da praça velha em frente à Igreja Matriz.
Corri ao coreto na parte superior da praça. Ela me acompanhou vagarosa. Olhei para trás, ainda parei, mas desisti de esperá-la para subirmos juntos os degraus que nos levariam até ele. Cheguei bem primeiro que ela, ainda podendo avistá-la e contar seus passos preguiçosos, degrau por degrau, a vencê-los sem pressa.
_Você é tristemente estranha. Acho que perdeu a graça de viver.
_Deixe-me ser assim. Não é o que quero ser. É o que me traz a memória.
_De que se lembra?
Foi quando vim a saber que seu único irmão, Felipe era seu nome, havia morrido justamente nessa época, após atear fogo num rojão embravecido que já nascera destruidor.
Quando não se sabe da dor alheia, não se vê a cor de seu sofrimento. Beatriz, aquela belíssima adolescente paulistana, tinha espinhos de mais em sua alma que só se acendiam nas proximidades dessa época. Era quando calada denunciava a força de sua melancolia.
Ainda tivemos tempo de nos apaixonarmos um pelo outro. Vivemos às escondidas entre beijos molhados e abraços atrevidos, durante mais de trinta dias. Nosso São João foi mais quente do que os outros vividos por ambos. Muitos fatos que vivenciamos, apesar de incontáveis, foram preciosissímos demais para nossas almas. Eu ainda sinto-a viva em minhas longínquas recordações quando estimulo a memória de evocação e assim ela me chega outra vez faceira e bela, diferente de sua tristeza junina.
Fiz fogueiras por mais de oito dias seguidos. Era o pretexto que encontrava para estar do seu lado, pertinho e agasalhado por dois fogos distintos. Apertava sua mão com a volúpia de um amor descoberto. Tinha-a na doce ilusão de um amor adolescente.
Numa segunda-feira, ao acordar, vi mamãe sorrindo. Achei uma mensagem em seu sorriso. Seus lábios tinham olhos. Sua boca era uma carta longa.
_Beatriz esteve aqui, filho, deixou lembranças. Você estava dormindo tão profundamente que não se acordou quando ela lhe beijou a fronte.
_Ela me beijou, mãe?
_Com muito carinho, de um jeito manso, triste e alegre, diferente. Seu beijo confabulou com o seu sono profundo. Você sorriu feliz.
Eu pulei de cima da cama, abracei mamãe com muita força e ela, sem conseguir traduzir aquele jeito de dor e de saudade, disse-me:
_Você está tão feliz..., acordou desse jeito...
Não agüentei. Molhei a ponta do seu avental de lágrimas da saudade apaixonada que cultivei por Beatriz por anos seguidos. Só após meu choro mamãe entendeu que seu filho estava implodindo em sua primeira e grande paixão. Hoje ainda sinto saudades dela. Faltam apenas duas semanas para ser ordenado padre e ela ainda entra nos quadros dos meus sonhos, me abraça, me beija, me aperta, mas nada ouço de sua voz.
Sei que estou prestes a dar um grande passo em minha vida. A última cartinha que Beatriz me escreveu tem mais de doze anos. Não sei para onde deve ter ido. De sua carta amarelada não me desgrudo. Tem seu cheiro almiscarado, guarda-me a grande dor de uma paixão nunca acabada. A paixão, virulenta demais, contaminou a alegria dos meus festejos juninos e nunca mais deixei de amá-la, apesar de nada mais saber do seu paradeiro triste. Saí de casa para não mais voltar..., talvez inconscientemente tenha feito isso à sua procura. O sacerdócio carrego comigo para sempre, a ordenação é que me ficou muito distante de mim.

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