Literatura_Narrativa_Contos: Sonho de milagre

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Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Thursday, December 14, 2006

Sonho de milagre





“Senhor, não sou eu digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”.
Senhor, não vos levo comigo para minha casa porque não a tenho. Moro num barraco de lona numa favela violenta. Lá, nem tamborete para sentar tenho. Durmo no chão, como o que me dão. Caço emprego há anos. Sempre volto para casa descontente, infeliz. Como vedes, não é nenhum mar de rosas a minha vida de cidadania.
Meus filhos conhecem mais os becos da favela que eu. Sua mãe passa o dia inteiro nas cozinhas alheias procurando trazer as migalhas que recebe, metade delas deixadas nas gavetas dos coletivos que precisa apanhar para se adequar ao seu ir e vir.
À noite, ouço os tiros demolidores, o trotar dos pés assassinos dos meus irmãos favelados e a dor da morte nos gritos escassos que nos amedrontam. Meu medo já me é ralo, diluído pela repetição das cenas de violência do dia-a-dia favelar. Lá, os mansos morrem por último porque se escondem do palco do medo.
Minha fé, Senhor, continua viva. Ai de mim se não a alimentasse. Quando me humilham, lembro-me de Vós; quando tenho fome, adormeço ao ouvir vossa voz no vento. Meus filhos já não me pedem o pão, acham-no, e eu acho que é vossa mão santa. Minha esposa nada me cobra. Tolero seu adultério porque é com parte dele que ela mantém a casa onde vivemos estranhamente. Como vedes, a vida me é desigual a de tantas outras favelas. Não possuo outro herói que não Vós.
Como posso chamar-vos para que adentreis minha morada? Apenas falais e tudo será feito segundo vossa ordem.
O que peço? Não sei dizer. Não tenho feito nada de bom para o mundo. Acomodei-me a pedir e pedir e, por tanto encontrar o que peço, deixei que a vida me levasse como todo o dia que se torna noite e que se finda quando já nasce outro sol e eu me vejo nas ruas a pedir tantas outras coisas ao povo do mundo. É o renovar-se de minha miséria, Senhor.
Ontem, quando cheguei em casa, nada encontrei. Meus filhos haviam morrido e estavam soterrados. Minha esposa, ao tentar salvá-los, morrera também. Eu não tinha mais o barraco, os filhos que amei mesmo com o meu descuidado gesto de cuidar.
Senhor, foi justamente hoje que senti vossa presença amiga e me lembrei de que necessitava de vós e que só por vossas mãos poderia ser servido. Necessitava do alimento da alma. Olhei para o barro frio e molhado que guardava os corpos deles, abri os braços, deixei que o vento me beijasse e, olhando para os olhos da chuva que ainda caía, disse: como posso chamar-vos Senhor, se já não tenho casa, já não tenho filhos e esposa, já não tenho saúde para correr às ruas a pedir o alimento do corpo?
Senti uma mão no meu ombro direito. Ela pesou. Era um homem de uma face mansa, olhar protetor, espírito que me falava sem palavras. Perguntei-lhe. Quem és?
_Tu me chamas sempre. Mas tua vida estava escrita. Deixei que as coisas acontecessem e então, após tudo, resolvi mostrar-me a teu coração.
_Quem és?
_Sou o que sou.
_Então, Senhor, não sou mais digno que entreis em minha morada porque ela não me é mais hospitaleira. Mas, se quiserdes, mandai que este barro saia de cima dos meus e aí tornarei a pedir-vos vossa entrada no meu barraco tantas vezes queira.
_Tudo te será feito. Anda, deixa que teu sono seja teus passos. Dorme e que teu despertar seja uma fogueira cheia de mel silvestre, porque tua fé fez transformar tua morte em uma vida. Eis que ressuscitaste entre o sono e a vigília.
Lembro bem que quando acordei e vi minha esposa e meus dois filhos deitados a dormirem do meu lado, não entendi o que de real me havia acontecido no sonho. Mas me foi real tudo isso. Só um milagre de Deus me convencerá do contrário.
É por isso que todos as noite, antes de deitar, eu ponho meu rosto entre as mãos e digo:
“Senhor, não sou digno que entreis em minha morada, mas dizei uma só palavra e serei salvo”.
Continuo morando na Rocinha, a sentir desgosto e a dormir com Deus no coração. As balas têm me assustado muito, ainda não consegui emprego, meus filhos continuam a passar o dia todo na rua e minha mulher a fazer o que jamais pensasse poderia fazer um dia...

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