Literatura_Narrativa_Contos: Duas Vidas

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Este espaço é reservado às pessoas com olhares interessados em Literatura, aos tecedores de amigos e aos amantes da vida. Nele, escancaram-se o coração e a alma _do Médico-Escritor, Paulino Vergetti_ para receber seus amigos e visitantes. Alagoano, nascido em União dos Palmares, terra do poeta Jorge de Lima e de Maria Mariá, publicou trinta e duas Obras: romance, conto, crônica, poesia e ensaio. Médico Oncologista, casado, dois filhos, reside em Maceió, onde escreve sua Literatura.

Wednesday, July 12, 2006

Duas Vidas


Somente no leito de morte de minha mãe, pude saber minha história, escondida pelas setenta chaves do proibido e do obsceno.
Ela trabalhava como secretária do doutor Danton.

À frente de sua eficácia profissional, bem à frente mesmo, impunha-se a tantos sua beleza física_ mulher de feições encantadoras_ onde a sedução havia achado morada fácil.

_Estou grávida, Danton!
_Nem ouvir isso eu posso, quanto mais acreditar no que acaba de me dizer. É mentira, diga-me, para que não venhamos a ter sérios problemas, a começar por sua demissão. Já imaginou se Camila, minha esposa, souber?
_Camila, sabendo ou não, a verdade é que estou grávida de você. Meu marido também vai ser uma pedra no meu caminho. Você acha que isso não o incomodará?
Passei a ter um convívio horrível com ele. Só gostou de mim, do nosso adultério, até saber que havia feito um filho. A gravidez o poria em situação extremamente delicada. Não pude me esconder com ela. As pressões para que abortasse foram enormes. Quando fiz quatro meses de gravidez, fui levada à força para retirar a criança. Meu marido a essa altura já havia sido informado por mim. Perdoar-me-ia, contanto que eu matasse a criança.
O mundo caiu sobre os meus ombros. O significado de minha maternidade, sua força sublime, parecia ter-se ido ao vento. Não me reconhecia como gente. As pressões que recebi foram bem maiores que minha vontade. Pus de lado até minha dignidade e assumi o crime hediondo. O velho doutor Glênio, amigo da família Miércoli, estava na sala de parto. Olhou-me dentro dos olhos e disse:
_É para o seu bem, minha filha...
Nada lhe respondi com palavras. Meu gesto de indignação foi virar o rosto para o outro lado da mesa de cirurgia.
Deu-se tudo. Apenas chorei. Não me lembro de ter sentido qualquer dor física. Sentí-me menos mãe apenas quando ouvi do doutor Glênio:
_Era uma menina. Acabou-se. Vocês estão livres.
Abafaram tudo. Saí da casa de saúde São Gerônimo uma hora depois. Lembro-me de que sujei de sangue o velho Aerowillis que me conduziu até minha casa. Senti cólicas fortes. Apenas gemi. Meu ventre continuava alto.
No portão do chalé onde morava, ao chegar, encontrei meu esposo. Baixou a cabeça envergonhado e entrou antes de mim. Sequer estirou-me a mão em sinal de ajuda. Entendi seu gesto. Externava a sinceridade de seus sentimentos. Estava triste com a traição sofrida.
Voltei a trabalhar e apresentar dores estranhas no ventre, além de edemas nas pernas. Comuniquei ao patrão que me deu férias de trinta dias. Resolvi ir a um outro médico e cuidar-me. Estive com o doutor Lázaro três dias após ter me afastado da empresa. Expus-lhe o que estava sentindo. Fiz os exames solicitados por ele e retornei à consulta.
A vida é o que aprendemos com o tempo. O homem passa a deixar suas idéias que se perdem ou se renovam noutras idéias, noutras vidas. A índole norteia nossos comportamentos frente às emoções. A maternidade santifica a mulher. Como era que me podia ser diferente?
_E aí, doutor Lázaro, o que há comigo?
_O que nunca vi antes em quase trinta anos de medicina obstétrica.
_O quê?
_Em seu ventre há outra criança que quer nascer.
_E a que tiraram?
_Era gêmea com essa.
Beatriz nasceu numa quarta-feira fria de agosto. Tive que viajar para longe de Alagoas para poder tê-la na calmaria doutros ares. Guardei esse segredo com todas as chaves que encontrei dentro de mim. Amei-a duplamente, talvez para esquecer a meia mãe que havia sido. Tive que abandonar emprego e marido em nome de minha própria absolvição como mulher cristã. Pesava-me o fato que havia consentido fizessem em mim.
Hoje é aniversário de morte de mamãe Évila. Ela escondeu de mim essa história até a última semana em que viveu. Lembro-me do nosso diálogo a essa época.
_Você me perdoa, Beatriz?
_Já o fiz, faz muito tempo. Agora descanse em paz.
Há um peso nos meus ombros, ainda muito forte. Parece não querer abandonar-me nunca. O destino me favoreceu e diminuiu essa dor. Tive um único parto do qual nasceram duas lindas crianças a quem pus os nomes de Lívia e Vitória. Mudei de amores: hoje amo apenas a vida.

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